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Localização: Trás-Os-Montes, Portugal

terça-feira, janeiro 10, 2006

2049, Mirandela, Arredores de Portugal

Alcino Oliveira, 23 anos, casado com Maria de Lurdes, iria ser pai num futuro breve, três meses faltavam para Maria dar à luz para ser mais preciso.
De malas aviadas, para abalarem rumo a Lisboa, faltava mesmo ajeitar a albarda do Jerico, burro do casal que os conduziria à maternidade de Lisboa.

Ir de burro para uma maternidade poderia parecer estranho, à 40 anos atrás, actualmente é o meio de transporte mais utilizado em Trás-os-Montes, e ainda bem pois assim evitou-se a extinção deste animal, o burro, teimoso mas muito amistoso e bastante útil nos dias de hoje.

O burro após a preservação da sua espécie ter sido ameaçada, haveria de ganhar um grande impulso, depois do governo decidir finalmente combater a desertificação de Trás-os-Montes. Medida pouco popular na altura, para combater a desertificação, foi o corte das estradas, mas isso acabou por não ter grande sucesso. Então os órgãos de decisão numa medida muito mais diplomática decidiram apenas não construir novas estradas, nem preservar as poucas existentes, que mais tarde se tornariam caminho de cabras, caminho de cabras é exagero o mais correcto é dizer caminho de burros.

Não venham aqui os radicais trasmontanos falar de discriminação, pois o dinheiro não chega para tudo, e se há aeroportos e TGV, muito se deve a um grande esforço financeiro do país. Além do mais os trasmontanos não se podem queixar, pois hoje 25 de Setembro de 2049, têm clínicas para a interrupção voluntária da gravidez, salas de chuto e ainda clínicas para o tratamento da toxicodependência através da metadona, completamente suportada pelo Ministério da Saúde, é claro que mais uma vez o dinheiro não chega para tudo, e portanto Mirandela e todo Trás-os-Montes não tem Maternidade.

Ora é justamente o facto, de não existir Maternidade nas proximidades que leva Alcino e Maria de Lurdes fazerem-se ao caminho rumo à capital, terra de oportunidades. Alcino leva na Algibeira uma côdea de pão, ao ombro uma bota de vinho, que com pão e vinho já se anda o caminho, e se o caminho é longo como é o caso então um alqueire de figos secos e um garrafão de aguardente lá há-de matar o bicho, e afastar a geada, até ao Marão. Para lá do Marão é ao fundo, a descer todos os santos ajudam, pelo sim pelo não o melhor é levar a Matilde, a cabra do casal, que dará leite à grávida, e algum sustento se o vinho acabar. E se isto tudo não chegar haverá mais dias do que chouriças, a que uma dúzia de alheiras deve fazer frente.

Não se pense que o burro é o único meio de transporte possível, para sair de Trás-os-Montes, existe também elevado número de helicópteros, que são usados para o transporte da metadona, mas Alcino era demasiado orgulhoso para pedir boleia à cruz vermelha, ou a algum helicoptéro do estado.

Quem não gostou deste orgulho foi Maria de Lurdes, quando começou a sentir o nevoeiro do Marão a entrar -lhe nos ossos. «Tinha feito um aborto, tinha médico de família pelo menos durante três meses, ou período pós-traumático, tínhamos um subsídio para o recomeço da vida e escusava de passar por isto. A mulher é que devia ter o direito de escolher, se quer ter um filho ou não».
São pensamentos que uma pessoa tem quando se junta a fome com a vontade de comer, nada que uma fogueira e uma alheirita não curem, se Alcino assim o pensou, melhor o fez. Maria de Lurdes, agora com o estômago composto, acarinhada pela fogueira colocava a mão na barriga, «como pude ser tão estúpida». Alcino é que sabia a mulher que tinha senão teria havido discussão na certa.

Passo a passo, Lisboa estava perto, o vinho acabara-se, alheiras nem vê-las, restava Matilde, magra da viagem, mas alguma coisa se havia de aproveitar. Alcino e Maria tinham uma devoção especial por Matilde, tinha sido uma prenda de casamento. «Gado que não dá criação não o quero na corte», repetia Alcino vezes sem conta para ganhar coragem de fazer o que tinha de ser feito, «tantas vezes coberta e nada». Pronto, agora é que já não havia nada a fazer.

Chegados à capital, instalaram-se num bairro de lata, «provisoriamente até arranjar emprego». Emprego é que não era fácil arranjar, «a um transmontano não há vaca que lhe arreganhe a beiça e cair só morto, mesmo quando o trasmontano cai, cai para a frente, até na desgraça avançamos», dizia Alcino de peito aberto a Maria de Lurdes.

O problema era as habilitações, mas «onde diabo iria arranjar um emprego sem habilitações, em Lisboa não há agricultura, ler mal sei, …». «Emprego só quero até o meu filho nascer, vá lá até ao primeiro mês, altura em que deverá aguentar a viagem, depois de estar lá em cima comida não lhe há-de faltar, que boas mãos para o trabalho tenho eu.»

Felizmente o esforço é proporcional ao sucesso, e Alcino lá conseguiu uma vaga através do centro de emprego como toxicodependente, tinha o equivalente a um ordenado mínimo, não era muito mas pelo menos era garantido, valeu a pena esperar pois além do emprego a Assistência Social acabou por lhe oferecer um apartamento, habitação social, por uma renda irrisória, «afinal o mundo não é tão mau como isso», mas o que mais agradava a Alcino era ter médico de família, coisa que nunca tinha tido, de facto Lisboa oferece outras condições. «Tinha tentado ser toxicodependente em Mirandela, várias vezes, desde que Maria de Lurdes apanhou uma pneumonia, com intuito de arranjar médico de família, mas nada, em menos de 15 dias tenho aqui tudo».

O que Alcino não pensou foi que em Lisboa a vida é mais cara, e o ordenado mínimo mal dava para o pão. Se bem que a toxicodependência não lhe ocupasse o tempo todo, conseguir outro emprego não se avizinhava fácil. Maria de Lurdes queria ajudar, « que gravidez não é doença», e no centro de emprego havia várias empregos que não exigiam habilitações específicas. As mulheres não se podiam queixar de falta de empregos, graças ao grande esforço de sucessivos governos no desenvolvimento de programas para a igualdade de oportunidades. Tinha vários empregos para prostituta, o que Maria estava longe de imaginar era que as empresas de lenocínio legalizado, discriminavam as grávidas, argumentando que não tinham mercado, o caso ainda foi ao Tribunal de Trabalho mas tudo ficou em águas de bacalhau.

Mais uma vez a sorte sorriu a Alcino, que como toxicodependente conhecia muita gente, de todos os gostos e feitios, foi assim que travou conhecimentos com Albertino da Silva, toxicodependente mas também deputado nas horas livres. Albertino da Silva era filho de transmontanos, embora Albertino nunca tivesse pisado terras para lá do Marão, tinha um carinho especial por aquelas gentes, e tratou de arranjar um bom emprego a Alcino. Arrumador de carros, emprego muito apetecido, dos mais bem pagos de Portugal, em troca, visto que ninguém dá nada a ninguém, Albertino pediu o Jerico, o burro de Alcino. O burro era um elemento de apoio muito útil para qualquer deputado, servia de transporte e evitava-se o dispêndio de dinheiro com arrumadores de carros. Isto porque não existia a profissão de arrumador de burros, e os arrumadores de carros não tinham formação específica para cuidar destes animais. Estes animais tinham mesmo lugar assegurado na Assembleia da República, (estilo estacionamento), mas isso é outra história…

A vida corria bem ao casal, o filho nasceu bem de saudinha, dois meses após o parto, Alcino e Maria decidiram regressar à terra. Foi uma decisão difícil, principalmente para Alcino, ganhava bem e tinha-se viciado completamente no trabalho, mas as saudades de Mirandela falaram mais alto.

Não tendo, burro resolveram apanhar o TGV até ao Porto e dali para cima algo se haveria de arranjar. E assim foi, do Porto a Amarante foram a pé, graças a Deus, que gente conhecida sempre se encontra e como todos somos filhos da terra a amizade está feita. Alcino pedia uma boleia na carroça do Senhor Justino, carroça essa puxada por dois machos, macho para quem não saiba é o animal cruzado do burro com o cavalo.

O Sr. Justino tinha ido ao Porto buscar uma criança, já filho adoptivo, que tinha mandado importar de Africa. A importação de crianças e posterior adopção, é um programa do governo, financeiramente assegurado pela Assistência Social, para tentar rejuvenescer a idosa população portuguesa.
O Sr. Justino era um homem alegre de piada fácil, depois de saber a história de Alcino e como tinha perdido o seu burro, mandou logo a sua piadita, «Burro que vai para o parlamento nunca mais de lá sai».


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