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Localização: Trás-Os-Montes, Portugal

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Preservação e Selecção Natural

Ano de 2106.

Joana e Mário decidiram ter um filho, ainda bem que o fizeram hoje, 20 de Dezembro de 2106. Decidiram está decidido, não foi uma decisão precipitada, há quase um ano que pensavam nisto e ainda vão muito a tempo, a Clínica Pré-Natal, fecha as inscrições a 25 de Dezembro e só voltam a abrir em Novembro do próximo ano.

Hoje em dia as mulheres não carregam os seus filhos nas barrigas, existem os úteros mecânicos, com o nome técnico de Pré-berço, é fácil e cómodo para os casais, o casal só tem o trabalho de fornecer o óvulo, algum esperma, depois é só levantar o bebé. Depois, não é logo a seguir, é passado um ano, as gestações nesta época demoram exactamente 365 dias, 366 se o ano for bissexto, todos os óvulos são introduzidos em Pré-berços no primeiro dia de cada ano ao meio-dia. Os bebés nascem todos ao meio-dia do primeiro dia do ano seguinte.

É impossível hoje em dia, a mulher engravidar, ter uma gravidez indesejada, até porque devido à poluição a fertilidade é baixa, por outro lado a laqueação das trompas uterinas após o nascimento tem uma influência decisiva se dúvidas houvessem. Este método utilizado em todo o mundo, trouxe muita dignidade ao ser humano, visto reduzir drasticamente o aborto, para além do controlo da natalidade. Claro que crítica sempre houve e sempre haverá, há até quem vá mais longe e diga que, «isto não tem outro objectivo senão o de transformar a mulher numa máquina sexual». «Quem diz coisas destas ou é padre e nunca andou com filhos às costas, ou virgem e não sabe o que é bom», respondem outros.
Além de tudo o Pré-berço, está provado cientificamente que, é muito melhor que o útero materno quer em segurança para o feto quer no desenvolvimento futuro da criança.

No entanto a crítica mais ouvida e com mais apoiantes é o facto de a gestação demorar mais que 9 meses, argumento baseado na demagogia do antinatural. Coisa incompreensível, há gente mesmo céptica, todos sabem que a gestação demora um ano para reduzir exponencialmente o sindroma da morte súbita nos bebés.

A Clínica Pré- Natal é única no país, dirigida pelo Doutor Manolo Peres, reputado obstetra, reconhecido internacionalmente, pelos seus conhecimentos científicos, no entanto muito controverso por ser um activista pró-vida, portanto anti-aborto. Este facto torna-se ainda mais caricato, quando a Clínica Pré-Natal para além de ser a única maternidade do país é também a única clínica de abortos. No entanto faz todo o sentido, uma vez que assim o estado não despende dinheiro no transporte de fetos.

O facto da clínica Pré-Natal ser a única do país, é mais um motivo para os conservadores, frustrados com certeza, abrirem a sua boca maldizente. Só, e ainda bem, que o governo não anda a dormir e lançou rapidamente uma campanha que consistia em comparar a Clínica Pré-Natal com a Casa da Moeda, assim todos ficaram esclarecidos. Menos quem não queria ficar, esclarecido, mas, estes provavelmente tinham interesses obscuros.

Em alguns países o aborto é crime, felizmente no nosso país isso já não se passa, os pais têm o direito de abortar quando o entenderem. Nem sempre foi assim, houve tempos em que o aborto era crime, depois passou-se para uma fase em que a decisão do aborto cabia inteiramente à mãe, agora é da responsabilidade quer do pai quer da mãe, uma lei mais democrática o que diz bem do desenvolvimento do nosso país em relação a outros. Mas para se ter a verdadeira dimensão do nosso avanço, é reparar na possibilidade de se poder abortar até ao 364º dia de gestação, 365º se o ano for bissexto.

A gentalha que critica, gente sem escrúpulos só pode, da Clínica Pré-Natal ser a única maternidade, é a mesma que critica também o facto de ser a única clínica de abortos. Por ventura estes indivíduos quereriam que o estado gastasse o dinheiro dos contribuintes em negociatas particulares. Como antigamente, no tempo das grávidas, em que as clínicas de aborto proliferavam graças a um marketing agressivo e publicidade enganosa - estilo:
“Nós eliminaremos o seu problema eliminando o seu bebé. Faça um aborto. É seguro, fácil, e uma solução legal".
Nada mais falso pois os problemas não acabam aqui, pelo contrário começam, com traumas psicológicos a todos os níveis para a mulher. Assim como as coisas estão é melhor, o estado concentra os seus serviços havendo um rigor muito superior quer a nível económico quer a nível humano.

Decorridos onze meses desde que Joana e Mário recorreram à clínica, a vida tinha dado uma grande reviravolta. Joana sentia náuseas, sentia-se petrificada, colada à parede branca da sala, talvez tivesse que abortar. Imóvel ouvia apenas o barulho do carro de Mário, Joana fazia um esforço para mostrar coragem, dois passo em frente, mãos em cima da mesa para amparar, não foi difícil, pesado sim. Ah! Uma cadeira.

Mário entrava na sala, Joana, com uma voz tremida de ansiedade, «Conseguiste arranjar emprego?». De olhos vazios, secos, olhos que viram muitas desilusões escorridas em lágrimas, mas que jamais chorariam, olhos sem vida, Mário deixa sair um «Não.», indiferente, depois de Joana se levantar da cadeia para ouvir a resposta. Os ombros de Joana caíram desanimados com o peso de uma esperança morta.

Joana queria mesmo ter este filho, não tanto por causa dela, mas sim para ver se Mário renascia para a vida. O melhor era fazer o aborto, as coisas têm a gravidade que tem, o momento em que são vividas é que diferencia tudo. Vistas bem as coisas o ordenado dela é suficiente para os dois, para três é que não, «de facto a vida até é bem simples, nós é que temos a mania de complicar, e se calhar ainda nem é momento de sermos pais, talvez para o ano se a vida mudar». Joana sentia-se muito mais aliviada, tinha feito as contas sempre para três e o dinheiro faltava sempre. A única coisa que a preocupava agora era a burocracia para fazer o aborto. Podia ter pensado nisto antes de o feto completar os nove meses, mas a esperança que Mário arranjasse emprego era maior.

Mário acompanhava a esposa sem dizer palavra, não porque estivesse triste, mas sim por hábito, a que se tinha acostumado sempre que Joana tomava uma decisão, e neste caso particular mais o seu silêncio fazia sentido, «Afinal ela é que tem o instinto maternal, coisa de mulheres, que aos homens não fica bem a não ser que sejam virados do avesso.» ele só tinha que assinar a papelada como concordava e pronto. Bem, mas também não se pense que Mário é um insensível, e que vai fazer um aborto de ânimo leve, apenas não há outra solução.


Há apenas duas razões para se poder abortar apôs os nove meses de gestação, a primeira - motivos de ordem económica, como é o caso e fácil de provar visto Mário estar desempregado; a segunda –em caso, de litigio conjugal. Esta segunda razão tem sofrido várias alterações nos últimos anos, não por culpa do estado, porque a lei é boa, mas as pessoas é que se aproveitam das leis para abortar (após os 9 meses) sem razão válida. Não há muito tempo, que casais encenavam brigas, com testemunhas em frente da Assistência Social, só para poderem abortar e depois do aborto eram (inclusive testemunhas) apanhadas em festas a comemorar. E sinceramente não há razões nem necessidade destes comportamentos se as pessoas se lembrarem de abortar a tempo e horas. Mas não, a velha maldição histórica de deixar tudo para ultima hora continua presente. Há uns anos atrás os bebés nasciam no Verão, por causa das férias muitos casais decidiam abortar repentinamente, este foi o principal facto, que levou o governo a mudar a data de nascimento, poupando assim muito dinheiro aos contribuintes, os abortos são uma despesa considerável para o estado. É tanto maior quanto mais idade tem o feto, pois o feto também se alimenta, e comida de feto é cara.

Depois da papelada, preenchida, Mário e Joana, dirigiam-se ao armazém onde os fetos se encontravam. Era a primeira vez que se dirigiam ali, visitas a fetos só eram permitidas no momento imediatamente anterior ao aborto, medida que recolhia grande simpatia por parte da população, por evitar sentimentalismos, que poderiam deturpar o direito à escolha (abortar ou não abortar).

À entrada do armazém, encontrava-se o Doutor Peres, com uma seringa na mão. Apesar de o feto não ser Ser Pessoa, tinha o direito de ter uma morte digna e sem sofrimento, por injecção letal e não por perfuração ou outros métodos arcaicos.

O Doutor Peres ainda os tentou demover do aborto, mas principalmente Joana estava decidida. Percorriam o armazém com filas e filas de Pré-berços, quase todos hospedados, pois os pedidos tinham sido muitos. «Ainda bem que os Pré-berços são opacos.», pensava Joana. Mete uma certa confusão, e muita impressão, a Joana os fetos serem mais parecidos com rãs do que com seres humanos, como toda a gente sabe. No entanto, estes pensamentos que Joana tinha, foram-se apagando, à medida que observava o Doutor Peres. Joana estava enternecida, com o amor que o Doutor Peres demostrava com os fetos por onde vai passando. Parece até que cumprimenta um a um, «No fundo ele é como um pai de todos, já que até agora foi ele que os tratou.».

Chegaram ao Pré-berço 2106-009191, onde está aquele que seria o filho de Joana e Mário. Este potencial filho caso viesse a este mundo teria como BI o número do seu Pré-berço. De “ses” não é o mundo feito, e o Doutor Manolo Peres espetou a agulha, no tubo que conduzia o alimento ao feto 2106-009191. Olhou, para Joana, para esta descarregar a seringa, Joana não teve coragem, olhou para Mário, Mário não teve coragem. O que mais desassossegou Joana, não foi o acto em si de descarregar a seringa mas o olhar reprovador do Doutor Manolo, se bem que o acto em si, «é um pouco abominável».

«Pronto já está. Vêem, não custou nada.», diz o Doutor Peres ao casal com uma voz reconfortante,que aliviou profundamente Mário e Joana, «nem parece a mesma a mesma pessoa de há pouco com aquele olhar gélido, cortante como lâminas.

O que Joana e Mário nunca chegaram a saber, é que a seringa apenas continha vitaminas. « Afinal, eu não mataria o meu filho, ou qualquer irmão dele que está neste armazém.», pensou o Doutor Manolo Peres.


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