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segunda-feira, janeiro 30, 2006

Transitividade do Amor

Foi nestes termos que, naquela noite, Marta se dirigiu a mim:

Foi-se todo o sossego… o sobressalto da minha alma abarca o túmulo do meu ser. Amo Lúcio como jamais amarei alguém. O seu talento de escultor não é comparável à arte do seu amor. Tenho de tomar uma decisão, não aguento mais. Um dia, sim um dia, nos entregaremos em êxtase eterno. Agora tenho de por fim a isto, a esta relação. Tenho de me lançar ao mundo com toda a minha alma, quero conhecer-me totalmente. Conheço-me apenas pelos olhos de Lúcio. Como posso ama-lo com todas as forças do meu ser se me desconheço. Quero desnudar novos recantos do meu ser, quero que me ajudem amar Lúcio como ele merece.
Nós gostamos dos outros pelo que eles vêm em nós, eu quero gostar de Lúcio pelo que ele é e não pelo que vê em mim.


Tentei em vão, convence-la a alterar a sua decisão, mas a sua determinação derrubava qualquer argumento que eu utilizasse.
Foi pois com grande mágoa minha que Marta interrompeu a sua relação com Lúcio. Para quem está de fora talvez seja difícil compreender Marta, no entanto os seus pensamentos, embora excêntricos, são claros. Marta gostava de Lúcio, Lúcio gostava de Marta, Marta gostava de si mesmo. É precisamente esse “Marta gostava de si mesmo”, que a perturbava. Marta adorava o que Lúcio via nela, adorava como uma droga, era completamente dependente dos olhos de Lúcio. O olhar belo de Lúcio reflectia na alma de Marta um brilho esplendoroso. No entanto ofuscava completamente Marta, colocou em dúvida se gostava mesmo de Lúcio, ou apenas gostava daquilo que ele a fazia sentir. Para pôr termo a estas incertezas, Marta precisava de se conhecer melhor, ver a sua alma também pelos olhos de outros que não Lúcio. Pensava ainda que os seus sentimentos pudessem ser egoístas, provavelmente gostaria de Lúcio, porque ele representava apenas um caminho para gostar dela mesmo. «Ora o amor não pode ser egoísta», disse-me ela, várias vezes. Esta procura pelo Ser, levaria Marta a por fim à relação e procurar outros homens. Depois de se conhecer além dos olhos de Lúcio, poderia amá-lo como ele merecia, sem egoísmos.

Quando Marta chegou a casa de Lúcio, este estava a trabalhar numa estátua, segundo ele uma escultura hiper realista, mas foi com surrealismo que recebeu a notícia. Acabou por aceitar a decisão de Marta embora não a compreende-se muito bem, «Mais valia perde-la por algum tempo que durante toda a vida», foi o que mais tarde me disse.

Marta graças à sua incomparável simpatia aliada a um corpo escultural, lindo de morrer, não teve qualquer problema em arranjar outros homens.
Um dia, não muito tempo depois, cerca de 5 meses, Marta descobriu coisas em si, que nunca tinha imaginado. Marta nunca mais seria como foi. Viveria a partir deste momento cada instante da sua vida com Lúcio, dar-lhe-ia coisa que antes nem sabia que tinha. Amava Lúcio, não tinha agora qualquer dúvida, estava pronta para voltar para ele e amá-lo profundamente sem egoísmos.

Marta faria uma enorme surpresa a Lúcio, ainda tinha a chave de casa, entraria a meio da noite, uma noite de amor.
Entrou em casa de Lúcio, as suas faces de brilho rosado, os lábios rubros de desejo tornaram-se numa palidez fúnebre. Não viu lúcio, viu apenas estátuas, estátuas frias mascaradas com fatos de pele humana. Estátuas hiper realistas, vestidas com a pele dos homens com quem nestes tempos tinha convivido e dormido. As lágrimas escorriam-lhe em soluços trémulos que ecoavam Traição. Marta sentia-se traída, Lúcio tinha invadido aquilo que mais estimava, a sua alma. Sentiu-se despida, como se a alma tivesse milhares de órgãos genitais e Lúcio os tivesse visto clandestinamente, da forma mais hedionda e imaginável, a violação. Violação de privacidade, era o que Lúcio tinha feito. Fugiu, correu sem destino, até as forças se esgotarem, nunca mais quereria ver Lúcio.

Ainda hoje, não tenho qualquer notícia de Marta. Lúcio, para grande pena minha, suicidou-se. Morreu o homem, mas o artista sobreviveu, as suas esculturas são hoje considerado património da humanidade. Quanto à matéria que ele usava nas suas esculturas, está actualmente a ser utilizado pela CIA, como disfarce de agentes em missões de alto risco.



Nota: Inspirado numa mescla entre os Poemas Prémio e Eminetemente do AL

6 Comments:

Blogger Misantrofiado said...

arrepiantemente extraordinário!

12:45 da tarde  
Blogger Amaral said...

Francamente, e na minha modesta opinião, eu apreciei este conto e acho que está muito bem escrito, conciso e claro. As personagens foram bem retratadas e os seus estados mentais perfeitamente definidos.
Na análise de cada uma das figuras, eu diria que Marta estava confusa, e os seus sentimentos em conflito com o seu consciente. Pelo contrário, Lúcio amava e descarregou na sua obra a incompreensão da atitude da sua amada…

11:41 da tarde  
Blogger Mac Adame said...

Está bom (tirando, como disse Al, um ou outro pequeno lapso de redacção). O homem morre, mas a obra, quando existe, fica.

2:38 da manhã  
Blogger Unknown said...

Engraçado...acabei de postar sobre as esculturas hiper-realistas de Ron Mueck...
O conto...gostei! parabéns!

6:01 da tarde  
Blogger Winterdarkness said...

Encontro-me numa situação algo semelhante à da marta, por isso, em parte acho que a compreendo e concordo com a decisão. Tb eu tomei a decisão de me conhecer melhor e aprender a gostar mais de mim. Por vezes, só amar alguém não é o suficiente para estarmos bem com essa pessoa...

3:31 da tarde  
Blogger Carlos Estroia said...

Vitor
Logo que haja vinhaça ( para "intensa actividade" neuronal vale tudo). Arma-te em simples e efémoro arma e não venha o vinho.
Tenho amigos que precisam de fazer rapidamente um seguro de vida

12:52 da tarde  

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