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quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O Pintor do Tempo

Escrevo palavras, agora que a saúde me abandonou e o fim está próximo. Escrevo estas palavras, com plena firmeza e segurança na minha mente, se é que alguém que passou pela prisão pode ficar imune à insanidade mental. Não as escrevi antes por receio ou vergonha que além de assassíno me pudessem chamar de louco. Louco, é um termo que abomino. Não quero aqui provar a minha inocência, faço disto tão só um pequeno testamento, que dirijo ao meu filho. Pouco mais me sobra, se não esta leve incerteza de que nunca matei ninguém, que em herança pretendo transmitir. Fui apenas condenado por um crime que não cometi, um crime que nunca o foi, um crime que nunca existiu.
Fui condenado, pela possível morte de João Pintor, assim era conhecido, hoje passados 40 anos, é tratado pelo Fantasma. O Fantasma da Casa Assombrada, casa dada ao abandono. Restam as ruínas. Intacta, apenas uma estrutura, a escadaria onde pela ultima vez vi João Pintor em carne e osso. Tenho ultimamente deparado com várias aparições desse Fantasma sempre no mesmo sítio, na tal escadaria intemporal.
Pois bem, conheci João, por volta do princípio da Primavera de 66. Nunca esqueci as feições assimétricas do rosto litúrgico, o olhar divergente e o cabelo destrambelhado, daquela inexplicável criatura. Era um espírito original, amável, com uma imaginação indescritível. Depressa me afeiçoei ao seu ar coloridamente desmazelado. Ao princípio estranhei, que labora-se sempre no mesmo quadro, dia apôs dia, sem lhe ver forma ou o mais leve contorno, qualquer linha colorida, qualquer traço perceptível. Mais estranhei, que o dito quadro, por mais que João pincelasse em louco frenesim de braços, não passava, a meus olhos, de um borrão de tinta azul. Estava desejoso de ver outras obras, que João tivesse produzido, esfriou-se o meu entusiasmo, quando me contou que havia queimado todos os seus quadros anteriores. A razão era simples, segundo João qualquer quadro produzido até aquela altura fosse qual fosse o artista, não passava de uma banalidade tacanha que nada tinha de arte, de arte suprema. Na altura, olhando para aquele borrão de tinta, não me apercebi do alcance das suas palavras, cheguei mesmo a pensar (e Deus me perdoe) que era um maníaco com manias d’artista. Oh! Como estava enganado!
Disse-me – Eis um trabalho de dois anos, uma obra jamais feita, uma obra quase perfeita, uma obra viva e no entanto nada de especial. Nada de especial. – num tom orgulhoso e contudo suava a uma desilusão enigmática.
Nada de especial, estúpido mesmo, pensei eu ao ver aquela nódoa de tinta espelhada na minha mesquinha ignorância. Não compreendia, um trabalho de dois anos para se esborratar naquela mancha, depressa desfiz as minhas dúvidas. João pegou no quadro levou-me para a cave, uma sala negra, forrada em veludo preto, confesso que por momentos senti um temor que me arrepiou desmesuradamente. Estava numa cave, em trevas abismais, com um louco, um louco de olhos estrábicos. O meu receio desfez-se repentinamente, quando João iluminou a sala com inúmeras luzes coloridas, apontando os seus focos para o quadro. Meu amigo, vê agora, olha para o nunca antes visto – disse-me. Olhei! Olhei paulatinamente! Absorto em pávida incredulidade! Atónito! O medo confundiu-me a mente, deturpou-me a vista! Esfrego os olhos! Esfrego, volto a esfregar! Não acredito! Não acredito! Pasmo! Oh! Incrível visão! Chuvas torrenciais de sentimentos esborratavam-se em mil emoções. Colapsos estonteantes. Deslumbrei planos e mais planos, planos perpendiculares, diagonais, tangenciais de paisagens coloridas que se precipitavam em espirais delirantes. Oh! E contudo sempre a mesma paisagem! A mesma paisagem em movimento contínuo, uniforme, acelerado, convexo, sei lá, sei lá… Diabólico, verdadeiramente diabólico! Um quadro vivo. Vivo! Vivo está vivo! Um quadro como se fosse um filme onde se sobrepunha frame após frame. Árvores que dançavam ao vento, rios que corriam. Juro, Juro que sentia a fragrância da verdura, ouvia os sons da água… Oh! Visão delirante!
Está vivo! Está vivo! - Gritei sem desviar o olhar obsessivamente petrificado. João tapou-me os olhos, chamou-me à razão, acho, não tenho a certeza, que me deu duas bofetadas para sair daquela hipnose colorida. Recuperei, não sei ao certo quanto tempo depois daquele choque ou festival de sentidos sei lá, já fora da sala negra com João ao meu lado com um copo de água.
- Incrível, isto é incrível! Não é possível!
- É possível, mas nada de especial.

Retorquiu João.
João explicou-me o porquê, de não ser nada de especial, eu criei arte viva, como é viva terá como fim a morte. Queria eu lá saber da morte, aquele momento havia de ficar para sempre. Fui para casa, e nessa noite concebi também a minha obra de arte, a minha obra viva, foi nesse dia que concebi o meu querido filho.
No dia seguinte, voltei a casa de João, mal o avistei logo lhe perguntei:
- Como conseguiste? Com conseguiste?
- Imaginação, meu caro amigo, imaginação. Como já reparaste não me sinto satisfeito com a minha obra. A minha obra vive, vive, repara bem, vive no tempo, ela muda, ela cresce, ela amadurece, ela envelhece e por fim há-de morrer. O tempo tudo corrói. Quero uma obra viva mas intemporal, eterna como deve ser qualquer arte. A única coisa, repara amigo, a única coisa que foge ao tempo é a imaginação. Temos artistas que ora têm como objecto o passado, ora o presente ora o futuro.
Dos artistas que se baseiam no passado - o passado são simplesmente tradições ou quando muito vãs recordações, nenhuma obra digna de se chamar arte pode resultar de tão pouco.
Dos artistas que se baseiam no presente – o presente não passa de moda, moda inútil, do inútil nada que se prime pelo belo pode resultar.
Dos artistas do futuro – O futuro em sí, como objecto da arte, é um ideal, todo o ideal tende para a perfeição, a perfeição, caro amigo, é impossível de atingir logo do impossível nada a que se chame arte pode resultar.
Tanto o passado como o presente ou o futuro, são simples coordenadas do Tempo.
Amigo, meu único e querido amigo, o tempo prende, prende tudo menos a imaginação, isso é claro, não tenho a mínima dúvida. O Tempo é como o ar, ou melhor é como o vento, para navegar no vento é necessário asas. As asas da imaginação. Isso também eu já fiz, mas como tu podes viste obtive, embora inédito e genial, este triste quadro, este quadro condenado, que tem a morte assegurada. Eu preciso de ir além do Tempo, só assim poderei desvendar aquilo que foge ao tempo e tornar minha obra eterna. Tenho de ir ao instante, anterior ao início do Tempo. Pois é isso mesmo que agora me preparo para fazer.


Envolto em terríveis nós neuronais, limitei-me a seguir João sem dizer palavra, não podia sentia-me atordoado, dirigia-se para a sua casa. Entramos, e disse-me:

Vou subir estas escadas de costas, é um pouco estranho, faço-o apenas porque me ajuda a concentrar, e a desenvolver a máquina da imaginação, não há outra razão. Depois viajarei pelo Tempo, pelo vento com as asas da imaginação, até ao início no tempo em que não havia Tempo. Voltarei, com segredos revelados que me permitirão fazer aquilo porque tanto anseio.


João subiu de costas, lembro-me perfeitamente, três degraus e subitamente desapareceu, deixando apenas uma réstia de luz. Luz essa, que de vez em quando, ainda hoje, é visível dai o nome de Fantasma.
Fui condenado, e verdade seja dita também por fruto da minha ignorância, pela morte de João, pois em vez de dizer que puramente não o tinha visto, mantive sempre a história que agora coloquei em palavras. No meu julgamento, e honra seja feita ao meu advogado, o quadro de João foi levado como prova, bem como todas as lâmpadas coloridas, para minha infelicidade o quadro tinha morrido, não passava de um borrão de tinta azul. Ainda hoje, tenho pesadelos com toda aquela gente a rir-se e a chamar-me de louco.
Apenas para finalizar esta história, que me tem consumido ao longo destes anos, aqui deixo umas breves ilações ou suposições do que aconteceu.
- O quadro morreu.
- Segundo dizem os físicos, e eu não percebo nada de Física, o Tempo não é concebível fisicamente antes do Big Bang, então, penso eu, João viajou, nas asas da imaginação, para um sítio onde não existia vento, não existindo vento ele não podia sai do instante da partida.
- Espero que João não tenha consciência desse instante repetido indefinidamente, o que se assim for ele vivera eternamente naquela alegria da partida, um instante eterno.
- Tenho pesadelos, só de pensar que de alguma forma João possa ter consciência que está a viver indefinidamente esse instante, ou seja um instante que embora alegre, se repete vez após vez deixa de ser alegre, para ser monótono, deixa de ser monótono para ser insuportável, é assim que imagino o inferno. Inferno! Meu maior medo, é que a minha vida para além da morte seja apenas um instante. O instante em que o meu filho não acredite na minha inocência.PEsadelo! Pesadelo!Inferno!!!!

11 Comments:

Blogger Alentejano said...

Obrigado pela tua participaçãp no debate...... Aparece

um Abraço

12:51 da manhã  
Blogger Mac Adame said...

Tal como aconteceu ao "eu" da tua estória, também o teu texto me deturpou a vista. Não o texto em si, que é bom, mas o facto de ter suas brancas palavras escritas sobre fundo negro. Desisti de o ler e vinha aqui dizer-te isso mesmo neste comentário. Só depois me lembrei que era possível lê-lo aqui desde que clicasse em "mostrar postagem original". Foi isso que fiz e assim consegui ler o texto todo sem ferir os olhos, com as palavras a negro sobre fundo alvo. E ainda bem que me lembrei de o fazer, porque a leitura valeu a pena.

1:07 da manhã  
Blogger antónio paiva said...

.......meu caro obrigado pela visita e comentário, obrigado também pelos excelentes momentos de leirura que proporciona......
[]

6:37 da manhã  
Blogger alyia said...

Gostei muito do texto
(posso perguntar: és filósofo?)

9:15 da tarde  
Blogger alyia said...

obrigada pela resposta :)

(o título não precisas comentar e nem o texto que aquilo foi só um exercicio e um jogo)

9:48 da tarde  
Blogger Conceição Paulino said...

criaste uma bela e estonteante narrativa. bom f.s Bjs e ;)

12:09 da manhã  
Blogger Misantrofiado said...

por acaso também costumo praticar e apurar a imaginação, andando por vezes de costas ou... andando sem ver... ou memorizando as cores e as formas que me rodeiam!
Bravo Carlos, ler-te é um óptimo exercicio.
Abraço

12:35 da tarde  
Blogger Rita Sousa said...

parabens pelo texto e tem uma boa semana

2:45 da tarde  
Blogger Carlos Estroia said...

Vitor, já sai da prisão, O Sampaio antecipou-se ao Cavaco, vais ter que pagar umas belas cervejolas à conta da minha libertação. Epá, já sei o sexo é um asteroide com uma pila parece um cometa.

12:10 da tarde  
Blogger Winterdarkness said...

Bem bem é sempre interessante ler os teus textos, se bem que, precise de algum esforço para me concentrar já que a minha mente começa logo a vaguear... Mas isso até é um elogio, pelo menos fico a pensar nas tuas palavras.

3:27 da tarde  
Blogger Saulo Silveira said...

Profundo....um passeio nas profundezas da alma, para ler e reler com calma. deixando as palavras posarem e aquietarem.

2:06 da manhã  

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