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sábado, março 18, 2006

A feia (II)

Olhou-se ao espelho, via uma cara que não reconhecia, podia ser algo de mau gosto, sem qualquer traço que identificasse uma personalidade, mas sempre parecia um rosto mais bonito que o anterior. Não devia haver espelhos no mundo, são uma perda de tempo, sobretudo são um reflexo daquilo que não somos. Toda a gente julga por reflexos, é hipocrisia, sem qualquer dúvida vivemos num mundo hipócrita. Fechou os olhos e viu o seu rosto antigo, os olhos não podem nada, são meros instrumentos do engano. Só as mãos são verdadeiras. Nunca podemos medir alguém por aquilo que ele vê ou como é visto, fala ou como é ouvido, por aquilo que ouve ou por aquilo que dá a ouvir. Deveríamos avaliar sempre pelo que se faz, pelas acções, devíamos saber ver, saber falar e saber ouvir apenas com as mãos. Só as mãos são o verdadeiro rosto da alma.

Desde criança que detestava bocas, pois eram as bocas que emitiam aquela palavra que a fazia sentir o ser mais odiado e horrível do mundo – a palavra «feia». Tapava os ouvidos, não queria ouvir, talvez por não ter grandes hipóteses raramente falava com alguém ou talvez porque não tinha nada de belo para dizer que fizesse com que os outros a olhassem de uma maneira menos cruel. Seja como for criou uma muralha à sua volta, não ouvia nada mas também não era ouvida, transmitia as suas emoções, as suas mensagens pelas suas criações. Transmitia pela sua arte, a arte da escultura. Gostava de pensar que nas mãos tinha os cinco sentidos.
Ainda há pouco ouvia as palavras desumanas, fazendo eco na sua mente, daquele que morreu a contemplar a sua nova imagem. São os enganos dos olhos, porque ela esteve sempre ali, sempre igual, sempre pronta a ser amada. Talvez por uma simples imagem que não era ela, ele tivesse visto o que estava por detrás do seu rosto. Nunca antes a tinham amado, mas agora tinha a certeza que esse homem que tanto olhares de repúdio lhe tinha lançado, tinha descoberto a sua essência. Lembra-se como detestava aqueles olhares, os olhares magoam mais que as palavras, num olhar pode-se reflectir tudo aquilo que é desagradável, mas só pelas mão se pode transmitir beleza. Ele morreu com a sua imagem nas mãos, não seria essa a maior prova de amor? Agora restar-lhe-ia sonhar com ele. Partiria com o seu amante, fechado para a vida mas solto nos encantos do sonho para jardins que lhe estavam proibidos desde o dia em que nascera com aquele rosto. Mas agora tinha um rosto que era feito com as mãos ainda que não as dela, mas que foram guiadas pela sua criação no fundo eram como se as mãos fossem as dela. Sem duvida que o novo rosto era a chave que abriria as portas do jardim, onde novas Primaveras floririam deixando para trás os Invernos da solidão.
Pensou em escrever todos os seus sonhos no jardim florido do amor para nunca se esquecer, mas não tinha o dom da palavra ou julgava que não tinha que é a mesma coisa. A sua memória estava ocupada com passados sem valor, passados cinzentos sem vida, queria colorir o seu futuro com lembranças de amor eterno. Sim todos os sonhos podem perdurar através das mãos, todos os sonhos se podem realizar com as mãos, as mãos são o sentido da vida, o caminho para qualquer sonho.

Pôs todo o seu encanto na palma da mão, tocou o infinito amor com a ponta dos dedos e moldou a mais bela estátua que alguma vez fizera. A estátua que representava a figura divina do seu amante. Estaria sempre ali, não faria mais estátuas, acabaria ali a sua arte, podia sempre visualizar o seu amor com o toque sensível das mãos, a doce ferramenta do amor. Jamais a figura do seu amante escaparia da sua mente, passou dias e dias fazendo quer mimos suaves ora toques intensos de desejos, sim porque o amor também é posse.

Um dia reparou que para além da estátua também via a imagem do seu amor como se fosse de carne e osso. Sabia que era uma ilusão que tudo que vem dos olhos é ilusão, mas o amor também é feito de ilusão e fantasia coisa que a nua realidade não pode oferecer. Ouvia da boca daquela imagem palavras que julgara nunca ser possível de ouvir, palavras belas que ecoavam numa doce e meiga presença nos longínquos segredos da alma. Sentia o olhar da imagem que já não era imagem, era o seu verdadeiro amor, cheio de ternura e admiração, sentia a vida bela e gostava, gostava do poder dos olhos. Sentia que a sua alma repousava deliciosamente no leito do amor, lado a lado com o seu amante.

Saiu à rua, mesmo que os outros falassem ela não ouvia, não por receio que algum mal dali resultasse, isso já não importava, mas apenas porque só tinha ouvidos para o seu amante. Era um mundo a dois e estava feliz. Fez compras, falou o estritamente necessário, olhou para onde tinha que olhar sem nunca tirar os olhos do seu amor. No caminho de regresso a casa sentiu uma mão a apertar-lhe o coração, um aperto tão forte que a fazia gritar silenciosamente como se a própria voz ficasse esmagada. Olhou para o seu amante e este esfumava-se lentamente tentando dizer qualquer coisa que ela não ouvia. Sentia umas picadas nos ouvidos, uns sons de estrondo como se todo mundo estivesse a desabar queria colocar as mãos nos ouvidos mas não podia porque o aperto do coração era dolorosamente insuportável. Sentia-se a desfalecer à medida que se ia deitando no chão, as lágrimas brotavam em estúpida perplexidade, não era pela terrível dor que sentia no peito ou nos ouvidos, eram lágrimas de tristeza, lágrimas de despedida por ver o seu amor a desaparecer, tornar-se invisível ou pior estar condenado à não existência. A sua vida sem ele não teria qualquer sentido e deixou-se morrer sem qualquer resistência.

Não se sabe se foi coincidência, mas nos breves momentos que levaram à morte daquela mulher, por muitos apelidada de feia, tinham entrado na sua casa uns vândalos que para além de roubarem o que de valor lá existia destruíram a estátua à martelada. Seja como for morreu de um fulminante ataque cardíaco. Quanto aos ouvidos nada foi detectado. A autópsia revelou ainda que a mulher feia, no breve instante que antecedeu a sua morte, tinha ficado cega.

Um pedreiro, um simples pedreiro, para homenagear a grande escultora fez dos destroços da estátua uma brilhante lage que revestiu gloriosamente a campa daquela que é hoje considerada a mais bela escultora de que há memória.

Nota: Ao Vitor, pela conversa da treta( ou não) que deu nisto... que vocês leram

14 Comments:

Blogger deep said...

Hei-de passar pra ler. Agora é só mesmo para te desejar um bom fim-de-semana.

3:10 da manhã  
Blogger antónio paiva said...

.....não há "feia" que resista, à criatividade das tuas imagens escritas.....

Abraço e bom fim-de-semana

1:47 da tarde  
Blogger Winterdarkness said...

hoe em dia as pessoas vivem de superficialidade e de máscaras; viovemos num mundo onde a mentira se torna verdade... Kiss

1:38 da tarde  
Blogger Mac Adame said...

Quem feio ama, bonito lhe parece (II).

8:22 da tarde  
Blogger alyia said...

Feia? Mas há alguém que seja feia? bem... hum... ok ok...a mulher do principe Carlos de Inglaterra!! Mas essa não conta :P

10:17 da tarde  
Blogger deep said...

O dia-a-dia exige-nos tanto , ou pelo menos escudamo-nos nisso, que não damos aos outros o tempo de lhes descobrir a essência... torna-se mais fácil julgar o que aos olhos parece óbvio...
Tem uma boa semana!

10:50 da tarde  
Blogger isabel mendes ferreira said...

e ainda bem que a "conversa" deu nisto!


um "isto" surreal e mt bom descrito.

beijo.

10:29 da manhã  
Blogger segurademim said...

a subjectividade dos conceitos... feia? porque se sentia, até ser amada! daí que possamos dizer que o amor derruba mitos...

depois, o que interessa o invólucro? se a importância está no conteúdo

beijo, boa semana ;)

6:45 da tarde  
Blogger mixtu said...

há duas cosas que produzem o belo: as palavras e as mãos, mãos de artista e palavras de escritor.
a obra nasce do amor e deste nasce a obra, umas com vida e outras com uma vida de amor, porém tudo é passageiro...
cumprimentos monárquicos

10:42 da tarde  
Blogger Eb1Eng.ºDuarte Pacheco said...

E vivam as conversas da treta!

11:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Conversas da treta =D
Espectáculo =P
Sorrisos e beijos

11:59 da tarde  
Blogger antónio paiva said...

.....bem caro confrade, fizeste um retriro estratégico, às vezes é preciso, quando puderes volta.....

Abraço

1:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O que será uma feia? Será que existe?
"Nota: Ao Vitor, pela conversa da treta( ou não) que deu nisto... que vocês leram"...Nada como uma boa conversa da treta (ou não) para nos inspirar...
Beijo terno.

10:34 da tarde  
Blogger amigona avó e a neta princesa said...

Comecei a ler mas não consigo acabar... mas vou voltar!...

1:50 da manhã  

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