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quarta-feira, março 15, 2006

O Caçador de almas

Noite de lua cheia. Nuvens rendilhadas trespassavam, aos poucos, a lua.
Do 5º andar sobressai da escuridão um cigarro aceso. Uma passa, um rosto imperceptível, olhos que reflectiam a cinza em rubro do cigarro. Olhos que se dirigiam ao outro lado da rua, um quarto, vidros transparentes, luz acesa, dois corpos entrelaçados.

………………………………..

Um homem nu, olhos fechados, impulsivamente descarregava raivas, medos e insucesso no ventre de Marta. Gemidos selvagens, talvez algum carinho, recordando alguém… talvez o prazer como cura para frustrações.
Marta deitada sobre lençóis, de olhos bem abertos, olhava o tecto branco. Não precisava de concentração para emitir gemidos que simulassem prazer. Todos os sons estavam mecanizados, assim como os gestos, gestos sensuais de todo o corpo. Apenas guardava uma coisa para si, os olhos, não venderia os olhos por nada. Se vendesse os olhos venderia a alma.

Olhava o tecto branco tentando levar a brancura para a sua mente, tudo branco a cor da pureza. Não era pureza que buscava, era esquecimento do momento, era esquecer a dor de sonhos perdidos. Toda ela era sonhos por conquistar, muitos deles em memórias esquecidas. Que interessa? Que interessa quando se é um depósito de raiva, um recipiente para outros reciclarem as suas desventuras… Que raiva! Quanto menos se quer sentir mais se pensa. Porque será que a mente não se desliga simplesmente?....Dois anos, dois anos e conseguiria todo o dinheiro que precisava para abandonar esta maldita profissão…escravidão, escravidão é o que é, escravidão da alma. É assim a vida dos tristes pensam sempre no futuro. De todos os sonhos que tinha tido, restava apenas um, o sonho de abandonar esta vida com alguma segurança financeira.
O cliente saiu, um cliente certo como outros que tinha, todos eles eram também poços de desilusões muitas vezes iam ter com ela, para encontrar um pouco de prazer alívio ou tão só uma voz que os afastasse da solidão…só ela não tinha nenhum prazer, apenas o prazer da acumulação do dinheiro.

Marta ficou sozinha, uma insegurança estúpida remoía-lhe a mente, sentia-se invadida por um olhar, nunca tinha tido esta sensação, nem precisava de ter, nunca se tinha importado que lhe espiassem o corpo. Desta vez era diferente não era ao corpo que esse olhar, que com certeza era só impressão, se dirigia, mas um olhar que a penetrava, um olhar que lhe despia a alma.
Assustou-se, a campainha tinha-a apanhado desprevenida. Quem seria? Não esperava nenhum cliente, só atendia clientes com marcação antecipada. Tinha trancado a porta de todos os sonhos. Porquê abrir esta? Não existe inocência quando o medo domina, sentia-se nua, vestia um corpo transparente feito de pele e osso, e um robe sem qualquer poder para esconder a alma. Óculos de sol…óculos de sol era o que precisava. Escondeu os olhos. Abriu a porta.

Um homem! Gabardina e chapéu cinzento claro, luvas pretas e um ramo de rosas. Estendeu o ramo a Marta, esta pegou-lhe instintivamente. O homem lançou apenas um olhar, um breve sorriso, antes de Marta agradecer já tinha virado costas.
Marta colocou as rosas numa jarra e pensava naquele instante desconhecido. Um sorriso abriu-lhe os lábios num leve prazer que soltou a imaginação. Daquele intervalo de tempo sobrou um olhar que a trespassou, um rosto de que não tinha lembrança. Era assim que via aquele rosto, um rosto sem contornos, ela que sempre fora boa a recordar caras… e por momentos sentiu-se só. Os sentidos não se dão com a solidão. Por isso tinha desaprendido de sentir, mas agora não conseguia evitar e gostava, sentia-se viva. Olhou a lua da janela, o silêncio do luar entrou-lhe na alma. Porque é que ele não tinha dito nada?

Uma voz não chega para serenar um corpo entregue aos ventos do tempo. E tentou recordar-se de um corpo de outrora, mas a mente esquece-se, restam os sonhos perdidos. Queria abrir as portas aos sonhos, sonhos que as palavras não conseguem descrever porque ficaram amarradas no tempo. Que interessa uma vida sem prazer? Que interessa amealhar pequenas fortunas, se tudo que se acumula são infortúnios? Que interessa o dinheiro se não posso viver com prazer? Fechou as janelas e deitou-se na esperança que durante o sono encontraria sonhos antigos. Só perdendo-se nos sonhos encontraria o caminho feito de desejo. A força dos sentidos são os trilhos do sonho. A solidão não é para os sentidos é para o pensamento e isso não é viver com o corpo...é a prisão da alma.Que interessa se a mente está viciada na prospectiva de arquitecturas futuras quando o corpo pede vida?

Adormeceu. Sonhou com todos os homens a quem tinha vendido os seus serviços, muitos dos quais não se lembrava, e de todos tirou prazer que na realidade não tinha sentido. No fim do sonho todos os homens se fundiram num só, no último que a tinha visitado. Acordou assustadoramente húmida, ainda ébria de sonho sentia que amava e desejava aquele homem de rosto indefinível. Agora via porque não se recordava dele, de qualquer traço do seu rosto, ele era todos os rostos, era todos os homens que estranhamente repugnava, mas viciantemente almejava essa união.

Um novo fim de tarde, princípio da noite, aconteceu. Marta atendeu os seus clientes com olhos fechados tentando absorver todos os obscuros desejos lascivos, raivas, obscenas exibições,…. Não precisou simular sorrisos, o seu encanto era natural, mas não escancarou a sua sinceridade para não afugentar clientes. Espreitava-lhes a alma, agora que tinha deixado de esconder a sua via a dos outros. Se fosse noutros tempos talvez vomitasse de nojo, agora não, agora rasgava trevas como se de uma viagem se tratasse.

Depois de atender todos os clientes, a campainha tocou novamente. Abriu-se a porta, entrou o estranho homem. Beijou Marta, fizeram amor intensamente. Marta sentiu um enorme prazer, orgasmos electrizantes que lhe extraíam todas as frustrações todos os medos, todas as raivas os mais dissimulados segredos. Sentia toda a sua alma espionada, mas não se importava, agora tinha a alma vestida de prazer, roupas coloridas de vida. O delírio do prazer acabou e o homem foi embora sem dizer palavra.

Marta cada vez mais abominava os seus clientes, mas agora empenhava-se em arranjar outros, não por dinheiro mas sim para lhes extrair todas as sórdidas solidões, todos os esgares odientos e principalmente a raiva e a inveja. Os clientes sentiam um enorme alívio na cama de Marta, mas também pressentiam algo desagradável, parecia que ela descobria o grande terror que lhes habitava na memória, os reles pensamentos desconfiados. Mas o vício impulsionado pelo prazer era muito mais poderoso que os desalmados receios. Também Marta estava viciada, precisava dos seus clientes para depois ter o prazer que tanto ansiava com o estranho homem.

Depois de uma noite de desenfreado sexo. O homem falou: Eu sou aquele que vive da raiva, do ódio, medo, matança, das infames ambições… E neste momento tu és como eu, precisas dessa sórdida morbidez da alma para viveres como um vampiro precisa de sangue, eu sou Mefistófeles. O verdadeiro inferno existe na vida, não te preocupes que nunca nos faltará comida, por mais fome que a gente tenha os humanos são uma fonte inesgotável da abominação que é o nosso alimento.

…………………………..

Intensa escuridão. Chovia torrencialmente, um cigarro via-se no 5º andar, era Marta que o segurava.

Nota: Inspirado no poema Mefistofélico Voyeur do Al (http://onzelapsos.blogspot.com/)

7 Comments:

Blogger antónio paiva said...

......intenso, mesmo muito intenso, na realidade as "Martas" são os "cofres" onde são depositadas milhares de frustaçãoes, se me permites caro confrade, pega nesta ideia e escreve em privado o Diário de Marta, vá lá nunca sabemos o que pode acontecer.....

Bom dia abraço

9:58 da manhã  
Blogger antónio paiva said...

.....(frustrações).....

9:58 da manhã  
Blogger alyia said...

E pronto fiquei quase meia hora a ler tudo, é o que dá ficar uns dias sem cá vir.
"O verdadeiro inferno existe na vida" qual quê?! Diz lá a essa gente que está enganada :)

11:49 da manhã  
Blogger Eu said...

muito bom (como sempre)

Eu não sei porquê, mas desta vez visualizei este texto numa banda desenhada a preto-e-branco (devo estar a ficar (mais) maluco...)

6:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fiquei pura e simplesmente sem palavras...
Ainda disfrutando cada palavra...
Parabéns!!!
Parabéns!!!
Beijo terno.

11:37 da tarde  
Blogger Mac Adame said...

Hmmm... Das duas, três: ou o início do texto é uma prolepse, ligando-se no tempo ao final do texto, ou então é o texto do meio (entre as reticências) que constitui uma longa analepse, o que, na prática, vai dar ao mesmo. Ou então - caso o que eu disse não seja verdade - não percebi o texto.

12:39 da manhã  
Blogger deep said...

Depois de ter sabido que lês Edgar A. Poe, compreendo melhor a origem das histórias que escreves. Nota-se a influência, mas não são iguais e as tuas também são bastante boas. Lembram-me também Os Contos do Imprevisto de Roal Dahl (acho que se escreve assim).
Tem uma boa noite!

2:58 da manhã  

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