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sábado, fevereiro 11, 2006

A Última Obra

A Última Obra

“… O medicamento Percipiolhoral usado experimentalmente em certas formas de cancro, mostrou que tem não só a capacidade de bloquear a replicação de células com VIH mas também a capacidade de destruição do vírus. A droga que actua sobre uma enzima conhecida como P-TEFb, interfere com o processo de transição, acabando com as mutações que eram praticamente impossíveis de ultrapassar no tratamento do VIH. A Dr. Elvira Matos e o DR. Ernesto Stein, ambos responsáveis pelo estudo e candidatos ao Prémio Nobel, afirmaram que o medicamento tem um sucesso total mesmo em doentes terminais.
…”
Texto publicado no Jornal X…

Foi com profunda desilusão que li esta notícia. Claro que fiquei contente pelo sucesso do medicamento. O que me entristece é a falta de ética e grande injustiça nestas coisas da ciência, o nome do Dr. Albertino Matos nem por uma vez foi mencionado. Estou certo que se ele ainda estivesse entre nós pouco ou nada se importaria. Irrita-me, faz-me muita confusão haver pessoas que se dizem cientistas e depois apoderarem-se de estudos alheios. Desejo de fama nada mais que isso.
Há uma espécie de homens que a civilização consegue negar ou ignorar. O Dr. Albertino foi um desses homens, sempre dedicou a sua vida à ciência, quiseram os Deuses que a ciência não lhe dedicasse uma só palavra. Os Deuses têm uma estranha forma de fazer justiça, esquecido pela ciência é hoje lembrado pela sua esplendorosa arte.
Travei conhecimento pelo seu invulgar espírito na III Conferência Internacional de Bioquímica – 20011, dedicada ao estudo e novas formas de abordagem do cancro. Reputado bioquímico, na altura, a sua palestra criou como era hábito uma grande expectativa. Subiu ao palco, apagaram-se quase a totalidade dos focos, pois o Dr. Albertino tinha adquirido uma estranha alergia à luz. O tema da sua palestra foi « A Ciência e a Arte», o seu ar delirante e entusiástico que sempre criara grande fulgor e curiosidade no público conferencista transformou-se em repulsa e risota geral. Trazia óculos escuros de cor amarela queimada, um sobretudo laranja zebrado na diagonal por listas de um roxo vivo. A calvície, que sobressaía num cabelo espigado, acinzentado com malhas de branco, reluzia na pouca luz, aliada ao seu jeito atabalhoado estava dado o mote para o bizarro.
Andava de um lado para o outro em passos curtos e rentes ao chão, ziguezagueando, abrindo os braços, falando coisas sem nexo, «A arte não é mais que informação quântica processada biologicamente, a ciência pode descobrir na arte curas milagrosas. Na arte não existe a dualidade Eu vs. Mundo, o Eu e o Mundo fundem-se num só, sentir é compreender, sentir é curar…». O homem está doido, bem que o dizia, a sua ex – mulher, a Dr. Elvira agora casada com o Dr. Ernesto Stein, a loucura total, no meio de frases mirabolantes, deu-se quando puxou de dois frascos em vidro com tampas esburacadas. Um dos frascos continha percevejos o outro piolhos, «A saliva do piolho impede que o sangue coagule, o percevejo pode recriar a dor através da cor, dor que se transmite pela arte, o percevejo pode dar pinceladas resplandecentes, vibrantes empastando ou provocando explosões, a dor fica no pintor que por sua vez a reflecte na tela, há uma transmissão quântica sem tempo nem espaço…». Talvez tivesse ficado nervoso com as gargalhadas que inundavam o anfiteatro ou tivesse alguma dificuldade em ver, o certo é que tentou elevar os óculos à testa num movimento brusco e deixou cair um dos frascos que se estilhaçou no chão soltando os irrequietos bichos. O homem baixou-se, corria em gatas atrás dos escorregadios insectos quando o Dr. Ernesto resolve parar a palestra do Dr. Albertino dando-a por finda. Todos saíram, olhando e sacudindo a cabeça com desdém para aquela criatura ainda de gatas e de costas viradas. Senti pena e fui ter com ele, demorei um pouco para pensar no que havia de dizer. Acabara de sair a última pessoa, para além de nós dois, senti um grande alívio pois não foi preciso dizer nada. O Dr. Albertino levantou-se num ápice e olhou para mim de cima a baixo e disse-me: «Ah, és tu!» Ali não tive a menor dúvida que estava louco, não me conhecia de parte alguma, sem que eu pudesse responder continuou: «Estava à tua espera, não sabia quem eras, mas o meu pressentimento estava correcto. Amanhã vem ter comigo, jantas em minha casa.» Deixou-me um cartão com a sua morada e partiu, fiquei especado tinha-me apanhado desprevenido e fui incapaz de dizer que não. De qualquer forma alguma curiosidade latejava em mim, de facto ele tinha sido um grande bioquímico e alguma coisa sã devia ter ficado de tão brilhante mente.
Uma casa de campo isolada no meio do monte, via-a ao longe, atravessei uma quinta rural relativamente iluminada cheia de estábulos e pocilgas, o caminho enlameado intenso de cheiros não me agradava, havia perdido o apetite. Entrei, a luz era mais forte na rua, o jantar em cima da mesa estaria com certeza mais quente que a ténue vela de cera esverdeada. Continuava vestindo aquele bizarro sobretudo, na cabeça usava um tricórnio preto que não tirou durante o jantar, argumentando que o tricórnio lhe projectava sobre os olhos a sombra necessária para serenar a sua alergia. Jantamos, pouco comi, tentei várias vezes puxar a conversa para o lado da ciência, esforço infrutífero que nada podia contra encorpados devaneios d’ arte. Na dureza daquela casa em pedra existia uma frágil mente em galopes alucinados de cor. Do estranho discurso que naquela noite proferiu pouco me lembro, a parte mais coerente, aquela que fixei, aqui a deixo: «No toque sensível do pincel, pintarei dores aglomeradas em degenerados corpos nus. Purificarei entranhas em tinta reflectidas. Na tela esbaterei dores por mim sentidas e antes transmitidas em ciência que por fim terão informação quantificada em arte…” Algo de estranho se passava, sentia a meus pés o chão a mover-se comecei a sentir tonturas, levantei-me desculpando-me com compromissos e trabalhos, encaminhei-me para a porta em paços estaladiços. Abri a porta, respirei ar puro com cheiro a estrume, olhei para trás seguindo os feixes de luz que entravam em casa e quase vomitava de tão nauseabunda visão. O chão impregnado de percevejos deslizava para a escuridão. Virei costas, acho que nem boa noite disse, e caminhei no meio do lodo. Ouvi ainda ecos, como que a suplicar - não vás já, do discurso da Conferência:
«A arte não é mais que informação quântica processada biologicamente, a ciência pode descobrir na arte curas milagrosas. Na arte não existe a dualidade Eu vs. Mundo, o Eu e o Mundo fundem-se num só, sentir é compreender, sentir é curar…».
No meio daquele caminho ensopado, que teria de seguir até à estrada onde deixara o carro, cruzei-me com um monte de estrume, no cume do monte erguia-se um sadio malmequer amarelo. Aproximei-me para sentir o seu perfume, uma leve fragrância era tudo o que levava de uma noite pestilenta.
Logo que cheguei a casa deitei-me estava exausto, tive dificuldade em adormecer, a imagem do malmequer no cume de um monte de merda não me saia da cabeça. Há imagens que criam mais raízes em nós que os pensamentos por mais lógicos que sejam ou pareçam. Uma flor no cume do estrume. Não seria à arte como imagem e à ciência como pensamento lógico que o Dr. Albertino se referia? Não estaria eu a julgar todo o meio envolvente do Dr. Albertino como estrume e a desprezar o malmequer dos seus pensamentos? Se sim, fui claramente injusto. «Amanhã irei visitá-lo novamente, por via das dúvidas», pensei.
Fui durante o dia que assim aqueles insectos repugnantes não sairiam do seu covil. Quando cheguei, no dia seguinte, reparei que o Dr. estava cego, aprontei-me a lamentar a sua terrível sorte, facto que ele recusou pois, segundo ele a cegueira tinha sido induzida, por processos que eu desconheço, para apurar sentidos. Cheguei então para falar de arte, coisa que para ser sincero nada sei, e não é, para espanto meu, que o homem se vira para a ciência. Diga-se de passagem que foi uma conversa bastante proveitosa, fiquei a saber que por exemplo a saliva do piolho impede o sangue de coagular e quais os processos químicos envolvidos, bem como mil e uma coisa sobre percevejos, desde as suas mandíbulas até ao seu zumbido, pormenores que aqui não explicarei. Convidou-me par voltar no dia seguinte, as 16 horas, altura que receberia a sua primeira cliente. Primeira cliente? Coisa estranha, um bioquímico armado em médico ou talvez artista, pensei mas não disse por educação.
Antes das 16 já eu lá estava, chegou então uma mulher na casa dos 30, 40 não mais, uma senhora em desespero sem um único cabelo. Eu conhecia-a era paciente da Drª Elvira, tinha cancro e a quimioterapia não produzira qualquer efeito benéfico.
Desceram para uma cave, o Dr. Albertino levava apenas vestido o seu habitual sobretudo, o objectivo segundo me apercebi era pintar um nu às escuras, por um pintor cego, e curar a doente. Armado em curandeiro artista, nunca tinha ouvido falar de tal coisa, provavelmente nem a senhora que tentava um milagre, ao que o desespero chega, pensei incrédulo. Passado algum tempo ouvi gritos de terror como se a senhora estivesse a ser dilacerada por monstros horripilantes.
Dei um pequeno passeio, não queria ouvir tal coisa, por momentos pensei em acudir a pobre coitada, mas pensei melhor, o Dr. Albertino pode ser tudo menos violador, isso de certeza não é. Avistei ao longe o Dr. carregando em ombros a paciente, aproximei-me a passsos largos, não queria acreditar no que via, a mulher estava empestada de terríveis mordidas empoladas. O D. disse-me: «Não te preocupes agora está bem». Não sei porque cargas d’ água acreditei na sua voz firme e convicta, chamei uma ambulância e acompanhei-a ao hospital. Estava bem, não corria risco de vida, antes pelo contrário, algum tempo depois o cancro tinha desaparecido. Ocorreram-me inúmeros pensamentos que a minha mente acostumada à lógica da ciência não conseguia explicar.
Voltei a casa do Dr., tinha os braços completamente empolados, implorei-lhe para me explicar tão insólito acontecimento, sob pena da minha mente entrar em colapso. O Dr., à sua maneira, tentou dissipar as minhas dúvidas falando da influência do zumbido dos percevejos aliado ao sangue humano podia além de ser um grande condutor ( veiculo de transmissão de informação, era também deflector e bloqueador de células cancerígenas, que juntamente a piolhos, à Teoria das Cordas ( nova teoria física que visa complementar falhas da Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica) e ainda à arte podiam determinar a cura. Não compreendi nada desta explicação, pareceu-me mais coisa de Espiritismo, de insectos nada sei de Física muito menos. Foi ai, que o Dr. me arranjou um paralelismo, ainda que grosseiro segundo ele, ao de uma máquina fotográfica. « Será a fotografia arte? Não, não é. Quando uma paisagem é fotografada temos como resultado uma foto que representa uma simples imagem, vista de um determinado ângulo, dessa paisagem. Nem por isso a paisagem deixa de existir. A verdadeira arte é aquela que além de representar o real a imaginação ou a paixão, altera a realidade transportando-a para dentro do artista, deixando esta de existir no exterior. Ficando apenas uma representação que damos o nome de arte. No fundo eu sou a máquina fotográfica ,com a vantagem da realidade que transpus para a tela deixar de existir no exterior passando a habitar em mim. Quanto aos insectos são apenas o meio que permite tal feito.» Fiquei estupefacto com tão grandioso acontecimento e alucinantes pensamentos. Uma coisa me perturbava ainda e perguntei:
- «Então Dr., isso significa que o cancro saiu da senhora para habitar em si?»
- « Sim é verdade, mas não fisicamente, existe em mim o cancro em forma de energia, se quiseres podes dizer, para ser mais simples, que existe em mim um cancro e que este se situa na alma, numa outra dimensão.
De facto era mais simples mesmo para uma pessoa da ciência como eu, compreender isto como algo ligado ao Espiritismo e não à ciência ou arte. Arte? Onde está então tal arte, perguntei. Foi quando o Dr. me mostrou uma estrondosa divindade. Um quadro expressionista, maioritariamente em tons vermelhos de pinceladas bruscas. Ah! Como é belo esse quadro, olhando-o tem-se milhentas emoções coloridas, dores diluídas em celestiais sensações! Indescritível! Só Vendo! Só Vendo! Quadro bem como outros, do grandioso pintor, estão à vista de quem quiser confirmar no Museu T…
Nos tempos seguintes acompanhei de perto todas as milagrosas curas e os seus deslumbrantes quadros. A obra do Dr. Albertino, inicialmente foi bastante divulgada pela curiosidade de ser um pintor cego, hoje felizmente é conhecida pelo seu incomparável mérito e talento.
No dia da sua morte teve um discurso estranho:
« Meu caro sucessor, a minha alma está cheia, já não posso mais, pintarei a última obra um auto-retrato. Darás esta obra a minha ex-mulher, ela saberá o que fazer…” Que raio quereria ele dizer com ser o seu sucessor, porque quereria ele que fosse eu entregar o seu auto-retrato à Drª Elvira, porque é que não a entregava ele. Prometi que sim, não conseguia dizer-lhe que não.
Fui para casa, não consegui pregar olho durante toda a noite, algo me preocupava, palavras que martelavam na minha cabeça: Máquina fotográfica; alma cheia; rolo;
Voltas e mais voltas e os olhos que não cerravam. Nasceu o dia, a claridade assaltou a minha alma abruptamente, se a alma é a máquina fotográfica e está cheia, significa também que o rolo está cheio e é necessário revelá-lo. Levantei-me, vesti-me apressadamente e corri como um louco ao encontro do Dr.
Encontrei-o morto, desalmadamente morto, uma verdadeira sucata leprosa, cancros em feridas abertas por todo o corpo, os braços e mãos cobertos de insectos hematófagos. Horrível! Horrível! Ao seu lado o quadro, o último quadro, que era uma cópia de todos os outros pintados pelo artista, divididos em pequenos quadrados, cada um quadrado um quadro anterior…
Entreguei, como prometido, a última obra à sua ex, esta por alguma consideração ou por divulgação da caridade resolveu expô-lo no Museu T… ao pé dos quadros anteriores. Este quadro era diferente de todos os outros, algum tempo depois começou a deteriorar-se e a emanar um cheiro putrefacto. Apôs análise pela Drª Elvira e pelo Dr. Ernesto Stein foi descoberto que a tinta usada era sangue humano que continha o vírus VIH, completamente controlado…

Ultimamente venho sentido uma crescente alergia à luz. Hoje pela primeira vez senti um incontrolável impulso de compra. Comprei uma tela de pintura….

4 Comments:

Blogger Elipse said...

Sugestão: e se as histórias fossem divididas em dois capítulos (cativavas o leitor, que se sente desencorajado perante tão longa escrita)
Mas vale a pena ler. O que mais me prende é a imaginação fabulosa e a construção narrativa. Gosto.
Nota mais fraca para uma adjectivação às vezes excessiva (os passos não têm de ser estaladiços, nem o cabelo acinzentado,as frases mirabolantes, as pinceladas resplandecentes, etc), podendo dizer-se as mesmas coisas sem esses adornos incomodativos. Se aceitares a apreciação, claro!
Mas tens leitora cativa!

2:53 da manhã  
Blogger greentea said...

um pouco longa talvez, a meio um pouco como diz al empastelada, mas em todo o caso cheguei ao fim e achei interessante a novela e o final. Penso que em dois capitulos cortava o interese; quem gosta de ler , lê até ao fim. Vale a pena continuares. E ainda dizem q é em Sintra q há mistérios e suspense!

12:08 da manhã  
Blogger Rita Sousa said...

boa semanita

12:14 da manhã  
Blogger Winterdarkness said...

Um início prometedor; será que os deuses fazem mesmo justiça ou isso será só um conceito inventado por nós! Pessoalmente não acredito muito que haja justiça mas quero acreditar... Concordo com outro coment pq acho que em partes a história se torna um pouco lenta mas gostei na mesma! ;)P.S.- Gostei tb da ideia que que a alma pode ser uma espécie de "máquina fotográfica" em que por vezes temos que revelar o rolo, para conseguirmos seguir em grente, sem demasiada dor.

12:02 da manhã  

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