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Localização: Trás-Os-Montes, Portugal

terça-feira, fevereiro 07, 2006

O Corvo

Paira sobre mim um terrível presságio. A minha alma sofre, arranha-me o espírito, sangram-me os pulsos impotentes contra garras felinas.
Agarrei num papel e escrevo, escrevo desalmadamente. CALA-TE!
Detesto psiquiatras. Abomino essas bestas, que se agarram com todas as patas à teia mórbida da ciência. Apavoram-me os cépticos, que me querem internar, eu que sempre trabalhei com e para eles. Ingratos, são umas bestas ingratas. Cépticos! Cépticos! São uns cépticos!

Três meses, faz amanhã três meses, que uma estranha criatura chegou ao Hospital Psiquiátrico. Podava, eu naquela altura, a Roseira de Rosas Brancas, assim chamada, junto ao portão da Entrada Norte. Norberto, trazia um casaco de fato anos 60, encardido de surro, parecia castanho, umas calças, limpas, de flanela com padrão axadrezado de azul e amarelo. CALA-TE!
O casaco parecia um colete-de-forças de tão apertado lhe ficava, as calças pelo contrário demasiado largas, largas e curtas com bainha apanhada pelos joelhos. As curtas calças, prezas por suspensórios laranja, deixavam ver umas meias altas e roxas com bonequinhos amarelos. CALA-TE!
Mais um maluco - pensei eu. As botas acho que eram de caça, mas não estou bem certo, outra coisa me prendia a atenção, um corvo. Um maldito corvo que sobrevoava em círculos enigmáticos centrados na cabeça de Norberto.
- Vai para longe, maldita aparição do Inferno! – Gritos agudíssimos, que Norberto deitava aos ares, tentando espantar a maldita criatura.
Acabou por ser internado como esquizofrénico, apesar de ter uma clara percepção da realidade. Um esquizofrénico, que foi internado por sua livre vontade, não passou despercebido às ignóbeis criaturas que dão pelo nome de psiquiatras. Não passou despercebido mas também não lhe deram qualquer importância. CALA-TE!
Norberto tinha uma clara noção da realidade, o problema era mesmo o seu interior, ouvia vozes. Não vozes que o perseguiam, ou lhe ditavam regras, apenas vozes que pediam ajuda. NÃO TE QUERO OUVIR! Não se achava Deus, nem um ser enviado por ele, apenas queria ser uma pessoa normal como antes o foi, ou pelo menos assim o dizia.
Transido de dor, repassado de terror, vagueava horas a fio pelos insensíveis corredores do Hospital. Gostava de se ver ao espelho, «Assim vejo-me, tenho a certeza de mim.», disse-me várias vezes.
Muitas vezes tinha convulsões de penetrante agonia, vibrava-lhe a face, tremiam-lhe os lábios, revirava os olhos, escorriam-lhe suores pela testa pálida, cerrava os punhos, contorcia-se no chão em sofrimentos abismais, espasmos aflitivos ritmados aos sons enojantes daquela maldita criatura, que rondava o Hospital, em negra chilrearia. CALA-TE!
Dia 8 do passado mês, voltou a ter um desses ataques terríveis, tal como outros juntava muitas boas almas, mais para ver do que para ajudar, os gritos de Norberto eram um bom alarme. Este ataque era pior que os outros, muito pior, até a maligna criatura, aquele corvo diabólico, emitia ruídos muito mais desesperantes que das outras vezes.
Norberto, rebolava pelo chão, não consigo imaginar as dores que aquele pobre diabo teria, abriam-se, nos seus pulsos, fendas que jorravam sangue em esguichos intermitentes, horrível. Olhos horrorizados das testemunhas, não fui o único a ver, éramos para ai uns dez ou mais, entre os quais estava o Dr. Pedro Silveira, o céptico ignóbil que agora me quer internar.
Um arrepio álgido percorria-me o corpo, quando, transtornado, deparei com uma luz branca e transparente com contornos electricamente ondulantes que saia, como uma serpente, dos pulsos de Norberto. A luz a todos deixara desmaiados, caídos no chão. O sangue que estava no chão evaporava-se sem deixar vestígios, sendo absorvido pela luz. Aquele corpo de luz, matéria energética ou que diabo era aquilo levita e dirige-se para a rua, através de uma janela semiaberta. Corri, hipnotizado, para ver a bola de luz, para ver qual o seu destino, flutuou no ar, planou no meio da rua, rodopiou algumas vezes, num instante ganhou uma aceleração diabólica e penetrou no maldito corvo que fugiu. Lembrei-me de Norberto, corri para socorre-lo, supus que pudesse estar morto, verdadeiramente morto, para meu espanto estava bem, com um sorriso nos lábios, ajudei-o a levantar-se, olhei-lhe os pulsos as chagas estavam cauterizadas, devia ter sido a luz. Os outros, com a nossa ajuda, iam despertando atabalhoadamente, ninguém se lembrava do ocorrido nos últimos 5 minutos. «Alguma fuga de gás, ou o cheiro de algum medicamento mais forte deve ter sido a causa dos desmaios», disse o Dr. Pedro Silveira. Ninguém reparou, ou ninguém quis reparar nas chagas cicatrizadas dos pulsos de Norberto. Quando pensava que o corvo tinha desaparecido, avistei-o novamente a rondar o Hospital.
Norberto, andava feliz, dizia que tinha muita gente para ajudar e que nem de perto estava doente, no entanto os ataques sucediam-se, mas agora sem gritos, continuavam era as chagas espalhadas por todo o corpo. Cada ataque, aquela bola de luz, que penetrava na malvada criatura, o corvo que depois fugia e regressava mais tarde. Várias vezes por dia isto acontecia, só eu dava importância a isso. Pois, essas imundas criaturas, os psiquiatras, são os culpados pela morte de Norberto.
Norberto, no dia 15 deste mês, teve o último ataque, um ataque sem dor, pediu-me antes de morrer, aliás eu só mais tarde soube que ele morrera, que seguisse o corvo. Segui o maldito, tendo a impressão que era o demoníaco corvo que me guiava. Entrou, pela janela, numa casa. Bati à porta, ouvi gritos de uma criança, gritos de medo de pavor, arrombei a porta e vi a maligna criatura atacar uma menina, não deve ter mais de 5 anos.
O corvo, atacava ferozmente, a face da menina transtornada, espantei o maldito. Vi, aquela luz, só que agora dividida em várias, que entravam na garota, pelas feridas provocadas pelo corvo, cicatrizando estas. Vi os pais, deviam ser os pais da criança, estavam furiosos tomaram-me por um assaltante, consegui fugir. Pelo caminho de regresso, deparei-me com um placar indicativo de uma associação. O nome chamou-me a atenção, Corvo Negro, o nome. Entrei, ninguém na recepção, caminhei por um estreito corredor que traziam vozes. Entrei numa sala com inúmeras pessoas, todas olhavam para mim com um olhar que me meteu um medo incalculável. Não que elas me quisessem mal, olhavam para mim com um olhar de veneração, autentica veneração, como se fosse um Deus. Fugi. Soube mais tarde que esta associação, era composta por membros que tinham o seguinte em comum:
1- Foram doentes de Epilepsia
2- Tiveram curas miraculosas
3- Na altura da cura todos tinham sido atacados por um corvo.

Paira sobre mim um terrível presságio. Paira sobre mim esse maldito corvo. Cala-te! Cala-te maldito. Não te quero ouvir! E tu cala-te também, não quero ajudar ninguém, não quero morrer! Não quero chagas! Cala-te! Ai! Ai os meus queridos pulsos! Vou! V…! V… ter…! Vou t…. outro…! Vou t… o… ata…!...........................



Nota: Inspirado no poema "Deixa-te Estar" do Corvo Negro(http://corvo-negro.blogspot.com/)

17 Comments:

Blogger Eu said...

obrigado por partilhares estes textos intensos, arrepiantes, impressionantemente visuais, dolorosamente físicos, e, acima de tudo, incrivelmente viciantes
(logo volto para o ler outra vez, pode ser que o corvo seja mais meigo á tarde)

;)

10:32 da manhã  
Blogger Carlos Estroia said...

Ora, ora, o prazer é ter leitores que gostem. Olha que o Corvo talvez fosse um bom pássaro, um pouco violento, mas bom rapaz quem não gostava era o "eu" da estória, mas são opiniões, se a estória continuasse secalhar gostava como o Norberto ou talvez não, como eu não sei deixei assim e cada um imagine aquilo que mais lhe agradar.

11:32 da manhã  
Blogger segurademim said...

Imagino que cada um escreve segundo a sua sensibilidade, fantasia e experiência... por vezes, consegue transmitir bem o que pretende!!!

imagino um eu sofredor, atacado por doenças insanas e penosas, terá consciência do real?

imagino outro eu, que lida com estes padecimentos e por isso tão bem os descreve! esse eu não deixa de se mover em ambientes insanos, sofridos...

imagino... pesadelos perturbadores de noite e que perturbam o dia !

imagino...

:)

12:29 da tarde  
Blogger Carlos Estroia said...

Segurademim:por acaso pensei nisso de "atacado por doenças insanas e penosas, terá consciência do real?" quando escrevi isto, resolvi o problema tornando a maluqueira exterior à sua mente(força oculta), e portanto não era ele o doente e podia descrever bem a situação ainda por cima tendo trabalhado com psiquiatras. mas no fundo e duma forma metaforica o que está em causa é a luta entre o Bem e o Mal. Aquilo que nos chamamos de Mal muitas vezes não é mais que o instinto da sobrevivência. Se pusermos de parte essa luta se calhar vemos que em alguns casos o dito Mal é o BEm. Um dos problemas dos esquizofrenicos é precisamente a noção do real, mas há casos embora raros em que tem um argumento, partindo (aceitando) algumas permissas, bastante racional.

12:52 da tarde  
Blogger Mac Adame said...

Com os momentos de quase histeria e o tema psiquiátrico, chegou a cheirar a António Lobo Antunes.

8:20 da tarde  
Blogger alyia said...

Excelente!

10:05 da tarde  
Blogger mixtu said...

lol. e eu que já fui atacado por um corvo... lol
saludos

12:34 da manhã  
Blogger antónio paiva said...

.....a fronteira entre a lucidez e a não lucidez é muito ténue, embora não tenhamos bem a noção disso.....

Bom trabalho.

1:15 da manhã  
Blogger Conceição Paulino said...

k maravilhoso texto entre o fantástico e o absurdo.Delicioso. Obrigada por estes momentos de leitura.
bjs de luz e paz e boa 4ª f.

1:23 da manhã  
Blogger greentea said...

e não serão assim os psiquiatras em Portugal?
Um texto, um Norberto impressionante, mas provavelmente veridico ... ou andará lá perto.
Trás os Montes, Marão , Vilar de Perdizes e outras cenas - gosto!

10:57 da manhã  
Blogger Misantrofiado said...

...eis que o Corvo reaparece!
Caro Carlos, em primeiro lugar o meu agradecimento e satisfação por ver o que escrevo servir de inspiração e logo a ti, que és mestre na escrita teatral.

Desta vez vou ser mais analítico em relação ao teu "O Corvo". Carlos, apesar de a história estar soberba de imaginação, deves no entanto ter mais cuidado quando à pontuação - nem sempre é a mais conveniente! Provavelmente terá sido distracção tua, mas, também existem erros ortográficos e uma ou outra palavra mal atribuída.

Aceita o que te transmito não como crítica destrutiva mas sim como sinceridade de quem gosta de te ler.
Quanto ao conto em si... bom, a luta do bem contra o mal é bem esplanada por ti (de uma forma pouco convencional - tornando-se por isso deliciosamente apreciável).
Em suma, os meus parabéns por mais esta criação - devo confessar-te que admiro bastante a tua vontade intelectual em proporcionares minutos largos de fixação e... que conseguiste surpreender-me.

Termino por desmistificar a verdadeira essência do pássaro Corvo - esse fantasma alado não é violento nem sequer uma força demoníaca.
Diz uma lenda que o Corvo é uma alma que regressa do reino dos mortos para vir atribuir justiça quando algo em vida ocorreu injustamente.
O corvo possui o dom da clarividência e entra na alma de quem o olhar nos olhos.
Brevemente... contarei a verdadeira história por detrás do "Corvo Negro"

Enorme abraço

8:13 da tarde  
Blogger Ana said...

Este texto demonstra que nós nunca temos a percepção total de nós mesmos!!!

Provocou-me um misto de sentimentos...

8:38 da tarde  
Blogger Elipse said...

Fabuloso o teu fantástico. Ou o teu real, que um e outro são faces da mesma coisa, nas palavras. Ou nas vidas.

11:10 da tarde  
Blogger LUA DE LOBOS said...

brilhante!!!!!
maria de são pedro

12:52 da tarde  
Blogger Amaral said...

Há uns anos atrás, eu era um entusiasta de contos. Devorava-os, imaginava como poderia adaptá-los ao cinema, calculava planos, idealizava a melhor montagem, etc., etc., etc..
Hoje, leio muito menos, mas não lhe perdi o gosto. A forma sucinta e coerente como um pequeno texto chega ao leitor continua a fazer-me lembrar a arte das caricaturas, dos esboços, da BD.
Isto a propósito de "O Corvo", na minha pobre opinião, inspiração ousada mas conseguida. Não fica atrás de qualquer conto publicado, e faz-me lembrar velhos e bons tempos…

9:59 da tarde  
Blogger Eli said...

Passei por cá!...


:)

2:26 da manhã  
Blogger Winterdarkness said...

Resolvi passar por cá e gostei do que li. Tirando alguns pormenores, o teu texto está interessante e intenso e gosto muito tb do poema a que foste buscar inspiração. Virei cá mais vezes.

3:24 da tarde  

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