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Localização: Trás-Os-Montes, Portugal

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

A árvore

Jacinto, perfeccionista por natureza, dizia vezes sem conta: “Se queres uma coisa bem feita fá-la tu mesmo.”
Já a dar as últimas, tinha uma doença mortal, repensou toda a sua vida, reparou que dele, para além do seu querido filho, nada nascera que ficasse para além de si, um erro, uma obra, uma simples frase, qualquer coisa que brilhasse ao sol para lá da sua existência. Decidiu que se tinha de morrer o faria pelas suas próprias mãos, uma morte perfeita portanto. A morte é imperfeita por definição, visto acabar com a vida, não podendo contrariar tal facto veio-lhe uma ideia à cabeça: sobre o seu corpo plantaria uma árvore, da morte alimentaria vida, a árvore seria o seu legado algo que cresceria ao sol.
Pediu, num dia em que chovia a cântaros, a Roberto, ainda jovem, que fosse com ele à floresta, para enterrar o seu corpo, este julgou que Jacinto não devia ter os 5 litros bem aferidos, mas como era a última vontade de um condenado lá acabou por aceitar. Roberto enterrou o corpo de Jacinto, sobre a sua campa plantou um amieiro e nada disse, fosse a que alma fosse.

Jacinto Filho lembrou-se, não se sabe bem porquê, que o seu pai, Jacinto, lhe tinha transmitido, um dia há muitos anos, um desejo – que o seu corpo fosse cremado depois da morte. Também não se sabe porque diabo, Jacinto Filho, julgava que o corpo do pai estava sepultado na floresta, vai daí, sem meias medidas, mandou incendiar a floresta.

O amieiro queimado lá consegui rebentar uns ramitos, rejuvenesceu e tornou-se mesmo numa bela árvore maior que todas as outras. Tão grande que quase chegava ao céu.

Jacinto Neto, filho de Jacinto Filho, tinha uma horta, coisa pouca, onde cultivava todos os seus comeres. Aí por meados do Verão, uma praga de melros, finos como ratos, depenicavam toda a colheita. Mais esperto que um melro era Jacinto Neto, carpinteiro de profissão, fez um espantalho tão bem feito que a passarada foi pregar para outra freguesia.
Certo dia uma trovoada torrencial que aquilo deitava faísca por todos os lados e chovia ao Deus m’ acuda, levou o espantalho para o ribeiro e daí para o mar. Que cargas d’ água o levaram ao alto mar é que todos desconhecem. Seja como for ainda bem que lá foi parar, ali por aquelas bandas um navio tinha naufragado.
Um padre, naufrago, já velhote viu no meio daquela escura e diabólica tempestade o espantalho. O padre, padre por devoção ou quem sabe por imposição da consciência, agarrou-se com toda a alma ao espantalho e veio dar à costa são e salvo. Milagre! Milagre, disse o padre Roberto.
Quem assim salva, das escuras e tempestuosas profundezas, só pode ser santo, todo o santo tem direito ao seu santuário. Toca então de fazer um santuário ao Santo dos Náufragos. O local para o Santuário é que criou polémica, uns votavam no local à beira mar, por razões óbvias; outros diziam que na montanha é que era, que dali podia ver melhor os navios em perigo. Ganharam os adeptos da montanha, nisto de lugares para santos ganham sempre os que ficam mais perto do céu, tem lógica. Construiu-se então o santuário na montanha mais alta das redondezas.
Jacinto Neto padecia dum mal que lhe consumia a saudinha toda. Nunca foi muito com essas coisas de santos, mas o desespero traz coisas à cabeça que nem ao diabo lembra. Foi com uma grande dor d’alma que visitou o santuário do Santo dos Náufragos, o santo não era propriamente o mais indicado, mas era sem qualquer dúvida o que ficava mais perto. Entrou no santuário e depressa reconheceu o santo, aproximou-se e disse-lhe baixinho: Estou a reconhecer-te! Com que então subiste na vida! Ainda a uns anos eras um espantalho e agora estás ai nesse rico pedestal adornado em oiro! Olha, não invejo a tua riqueza, vamos fazer o seguinte trato: Tu curas-me do meu mal e eu não digo a ninguém que és feito do mesmo amieiro que os sócos que trago calçados.
Regressou a casa, passou pelo tronco que outrora foi o maior amieiro e reparou que deste brotava já um ramito comprido, tirou algumas folhas fez delas um chá que tomou.
Não se sabe se foi o chá de amieiro, se foi o tempo ou o santo, mas a verdade é que o mal passou algum tempo depois. Jacinto Neto, julgou que foi o chá e desde então, nas épocas de secas, vai levando um baldito de água ao amieiro.

Nota: Dedicado ao amor que a Bitta (http://diariobitta.blogspot.com/ ) tem pelas árvores.

5 Comments:

Blogger isabel mendes ferreira said...

boa noite Árvore...obrig.

bjo.

11:16 da tarde  
Blogger antónio paiva said...

.....há sempre quem se dedique a salvar espantalhos(ironia), mas amo as árvores.....
Um abraço caro confrade!

1:59 da manhã  
Blogger alyia said...

Estroia, posso fazer um pedido? (não me importo de ficar em lista de espera) Após tantos textos e hinos à morte... dá para fazer um textozinho à vida? É que com a tua aptidão para a escrita, eu tenho a certeza que vai sair o mais lindo texto alguma vez lido

3:01 da tarde  
Blogger alyia said...

Obrigada Estroia :)

5:09 da tarde  
Blogger Rita Sousa said...

oi...
Pois é parece que a imortalidade se apoderou do Jacinto.... E se calhar ele foi a coisa mais bem feita.

thnk u

9:25 da tarde  

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