Sátiras

Nome:
Localização: Trás-Os-Montes, Portugal

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Transitividade do Amor

Foi nestes termos que, naquela noite, Marta se dirigiu a mim:

Foi-se todo o sossego… o sobressalto da minha alma abarca o túmulo do meu ser. Amo Lúcio como jamais amarei alguém. O seu talento de escultor não é comparável à arte do seu amor. Tenho de tomar uma decisão, não aguento mais. Um dia, sim um dia, nos entregaremos em êxtase eterno. Agora tenho de por fim a isto, a esta relação. Tenho de me lançar ao mundo com toda a minha alma, quero conhecer-me totalmente. Conheço-me apenas pelos olhos de Lúcio. Como posso ama-lo com todas as forças do meu ser se me desconheço. Quero desnudar novos recantos do meu ser, quero que me ajudem amar Lúcio como ele merece.
Nós gostamos dos outros pelo que eles vêm em nós, eu quero gostar de Lúcio pelo que ele é e não pelo que vê em mim.


Tentei em vão, convence-la a alterar a sua decisão, mas a sua determinação derrubava qualquer argumento que eu utilizasse.
Foi pois com grande mágoa minha que Marta interrompeu a sua relação com Lúcio. Para quem está de fora talvez seja difícil compreender Marta, no entanto os seus pensamentos, embora excêntricos, são claros. Marta gostava de Lúcio, Lúcio gostava de Marta, Marta gostava de si mesmo. É precisamente esse “Marta gostava de si mesmo”, que a perturbava. Marta adorava o que Lúcio via nela, adorava como uma droga, era completamente dependente dos olhos de Lúcio. O olhar belo de Lúcio reflectia na alma de Marta um brilho esplendoroso. No entanto ofuscava completamente Marta, colocou em dúvida se gostava mesmo de Lúcio, ou apenas gostava daquilo que ele a fazia sentir. Para pôr termo a estas incertezas, Marta precisava de se conhecer melhor, ver a sua alma também pelos olhos de outros que não Lúcio. Pensava ainda que os seus sentimentos pudessem ser egoístas, provavelmente gostaria de Lúcio, porque ele representava apenas um caminho para gostar dela mesmo. «Ora o amor não pode ser egoísta», disse-me ela, várias vezes. Esta procura pelo Ser, levaria Marta a por fim à relação e procurar outros homens. Depois de se conhecer além dos olhos de Lúcio, poderia amá-lo como ele merecia, sem egoísmos.

Quando Marta chegou a casa de Lúcio, este estava a trabalhar numa estátua, segundo ele uma escultura hiper realista, mas foi com surrealismo que recebeu a notícia. Acabou por aceitar a decisão de Marta embora não a compreende-se muito bem, «Mais valia perde-la por algum tempo que durante toda a vida», foi o que mais tarde me disse.

Marta graças à sua incomparável simpatia aliada a um corpo escultural, lindo de morrer, não teve qualquer problema em arranjar outros homens.
Um dia, não muito tempo depois, cerca de 5 meses, Marta descobriu coisas em si, que nunca tinha imaginado. Marta nunca mais seria como foi. Viveria a partir deste momento cada instante da sua vida com Lúcio, dar-lhe-ia coisa que antes nem sabia que tinha. Amava Lúcio, não tinha agora qualquer dúvida, estava pronta para voltar para ele e amá-lo profundamente sem egoísmos.

Marta faria uma enorme surpresa a Lúcio, ainda tinha a chave de casa, entraria a meio da noite, uma noite de amor.
Entrou em casa de Lúcio, as suas faces de brilho rosado, os lábios rubros de desejo tornaram-se numa palidez fúnebre. Não viu lúcio, viu apenas estátuas, estátuas frias mascaradas com fatos de pele humana. Estátuas hiper realistas, vestidas com a pele dos homens com quem nestes tempos tinha convivido e dormido. As lágrimas escorriam-lhe em soluços trémulos que ecoavam Traição. Marta sentia-se traída, Lúcio tinha invadido aquilo que mais estimava, a sua alma. Sentiu-se despida, como se a alma tivesse milhares de órgãos genitais e Lúcio os tivesse visto clandestinamente, da forma mais hedionda e imaginável, a violação. Violação de privacidade, era o que Lúcio tinha feito. Fugiu, correu sem destino, até as forças se esgotarem, nunca mais quereria ver Lúcio.

Ainda hoje, não tenho qualquer notícia de Marta. Lúcio, para grande pena minha, suicidou-se. Morreu o homem, mas o artista sobreviveu, as suas esculturas são hoje considerado património da humanidade. Quanto à matéria que ele usava nas suas esculturas, está actualmente a ser utilizado pela CIA, como disfarce de agentes em missões de alto risco.



Nota: Inspirado numa mescla entre os Poemas Prémio e Eminetemente do AL

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Princípio da incerteza

Discípulo para o Mestre:
- Mestre, aquilo que diz e escreve é de génio ou fruto do acaso?
Mestre:
- Todos os génios são fruto do acaso.
Discípulo:
- Mestre, então os génios nascem do acaso?
Mestre:
- São os génios que criam o acaso.

E o Discípulo partiu.

Oh! Se a força de espírito e das palavras do Mestre, me desvendassem os mistérios que me atropelam a cada momento.
Oh! Que feliz a morada do ventre materno, um cordão apenas é todo o nosso sustento.
Oh! Recordações apagadas.
A espuma do mar acalmará o tormento de minha alma.
Encontrarei quente conforto no laranja poente, banhar-me-ei em raios d’oiro, sentirei frescura no prateado mar.
As ondas deixarão na cristalina areia, segredos ocultos do oceano profundo.


O Discípulo olhava o mar inquieto, agitava pensamentos nos instantes das ondas. Ondas furiosas, que lutavam entre si para beijar os lábios, feitos d’areia, da doce terra. Se segredos traziam, segredos levavam.

A espuma, são apenas vestígio instante que se sobrepõe a instantes de breves beijos. Beijo de instantes, nenhum beijo perdura. A luta é longa, o beijo breve, assim é a vida, instante que se sobrepõe a instante. As ondas são a inquietude do coração, bate, bate, e nunca o sangue é o mesmo.
O mar é como o ventre materno não deixa recordações. Deixa instantes na areia, que o vento leva quando a maré baixa.
Desarmei-me de ilusões e seduções do mar. Dormirei aqui, amanhã subirei à montanha.


A claridade da manhã iluminaria o caminho, a frescura do orvalho matinal traria verdura, coberta de esperança.
Deambulou pelo labirinto de florestas, trepou rochedos, serpenteou atalhos e chegou ao cume.
Expiram-se vapores, rasgam-se nuvens, reluzem entre as névoas um clarão, o azul domina.
Olhou o céu que estendia o sol, não viu reflexos, polido em demasia está o céu, pensou.
Olhou as cachoeiras que se precipitavam em abismos. Olhou mais profundamente ainda, e viu a lucidez do mar.

É do alto da montanha que vemos a serenidade do mar.
Desvendei algo em alturas, é pois hora de falar novamente com o Mestre.


Discípulo para o Mestre:
- Mestre é de longe que se vê a natureza das coisas?
Mestre:
- Volta a subir a montanha e repara no elefante e na formiga.

O Discípulo assim o fez. Chegado ao cume, olhou e viu que o elefante e a formiga eram, pareciam, do mesmo tamanho.

Jamais recearei na vida mergulhar.

Desceu a montanha e mergulhou no tempestuoso mar. Tão fundo, tão fundo que nem a luz se atreveria a tanto. Descobriu que sem luz, nenhum tesouro reluzia. Sem mistérios desvendados, faltou-lhe o ar, desmaiou.
Despertou na areia húmida, deu graças por ter sido salvo sem saber por que artes.

Renasci por acaso, pensou.

Era já manhã e o sol brilhava imponente, quando o Discípulo reparou que não tinha sombra. Reparou ainda que também não se recordava de antes a ter. Nunca tinha reparado na sua sombra. Sempre tinha preferido o sol às sombras, mas agora sentia falta de uma sombra.
O Discípulo procurou o Mestre, quando encontrou o Mestre viu que este era a sua sombra.

O Discípulo nada perguntou à sua Sombra, que antes era Mestre, abraçou-a de saudade e colocou-a a seus pés, nunca mais se separariam, pensou.

A Sombra ficou feliz, assim podia guiar-lhe todos os passos, até que pudesse andar pelos seus próprios pés.

Um dia o Díscipulo, tomou consciência que desde que o Mestre era Sombra, nunca mais falou com ele, ou melhor com ela, a Sombra. Descobriu ainda, que ficava sempre entre o sol e a sua Sombra.

Oh! Como fui egoísta, queria que a Sombra estivesse sempre comigo, não apenas em breves instantes, e acabei por acorrentá-la a meus pés.
Solto-te agora, vai sê livre, tu que mesmo presa, nunca me tiraste o sol, a luz do saber.


Sombra:
Nunca fiquei presa contra minha vontade, eu sempre guiei os teus passos, construí o teu caminho até este momento. Agora podes caminhar, pelos teus pés, caminhar ao acaso, e talvez um dia possas ser génio e construir um caminho feito de acaso. Instante a instante, construirás o teu caminho. Agora tens a humildade suficiente para não condensar todos os instantes.
Quanto a mim vou esperar que alguém me encontre por acaso como tu o fizeste.


Anos se passaram, e o Discípulo já não recordava como a vida era com a Sombra a seu lado. A Sombra é como o ventre materno, pensou de maneira feliz. Agora vivia todos os instantes, já não pensava em instantes. Nunca mais seria como foi, seria como o acaso quisesse, e ele faria o acaso como quisesse.





Nota:Esta história nasceu para tentar retratar o poema Eminentemente que o Al escreveu, o resultado não foi conseguido, o vento não soprava de feição, amanhã talvez volte a tentar se o vento ajudar.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Auto Conhecimento

Entre amigos e conhecidos, eu inclusive, João sempre foi visto como uma pessoa que transbordava e partilhava boa disposição. Por onde passava emanava, uma áurea de compreensão, uma força divina de cumplicidade estonteante. A sua forma de viver roçava as fronteiras entre uma loucura contagiante e uma mente brilhante.
Desde pequeno, dizia ele, que tinha aprendido a controlar os sonhos. Começou por deixar de sonhar o que não queria para passar a sonhar com o que queria. No fundo tinha duas vidas, uma de olhos abertos e outra de olhos fechados.
Embora não tenha qualquer dúvida da realidade desses sonhos, durante o sono de João, posso afirmar que tinham tanto de fantástico como de incompreensível. A imaginação fascinante de João, era vista por alguns como algo muito próximo do delírio mental, alguns mas não muitos, sobretudo por gente que mal o conhecia. Felizmente eu tive o privilégio de conviver de perto com João.
Se não tivesse visto seria para mim muito difícil de acreditar, mas o certo é que os poderes mentais de João não se limitavam ao controlo e criação de sonhos mas também se alargavam a poderes telecinéticos. Movia pequenos objectos por acção da mente. O seu objectivo dos últimos tempos, antes de ter ficado como está, prendia-se com ampliar os seus poderes, para objectos de maior peso.
Lembro-me, perfeitamente, das suas ultimas palavras:
“ Tudo está ligado, nada está isolado. O mundo é um grande rio, uma corrente universal da qual fazemos parte. Tudo é uma grande melodia que vibra em uníssono.
A chave de tudo é o auto conhecimento, é estarmos em harmonia com essa grande sinfonia que liga tudo e todos. A essência! A essência! Tenho de ir à essência! Sei coisas! Sei que sei!
Tenho de me desligar de pensamentos, de hábitos e costumes, coisas que me afastam da essência, do «átomo», da partícula essencial da vida.Não posso ficar condicionado por pensamentos, tenho de atingir o «Eu Interior», a minha alma.
Tenho de atingir a energia divina a essência da natureza. Eu, tu, todos fazemos parte de um todo da mesma essência.
Tenho de ir ao infinitamente pequeno, ao vazio. Conhecer todas as partes do «Eu», a corda vibrante da vida.
Tenho de desprender-me de todos os pensamentos, conhecer-me profundamente, conhecer como as minhas partículas, as minhas cordas interagem com o todo.
Ah! O vazio! O vazio! Tenho de apagar todos os meus pensamentos e ouvir, plenamente sem interferência de pensamentos, a voz do mundo.”

Apôs estas palavras, ditas em forma de delírio energético, fez-se uma breve pausa, depois de forma repentina disse-me:
“Volta amanha, por volta das 10, agora tenho que meditar.
Verás que não só poderei mover qualquer objecto mentalmente, como desenvolverei poderes telepáticos.”

Estas palavras, para quem não conhece-se João nos seus melhores tempos, poderiam soar a insanidade, quanto a mim posso dizer que as levei bastante a sério, com grande admiração. Nessa noite praticamente nem dormi, a ânsia de ver os progressos do João eram gigantescas.
Pouco antes das 10 horas estava à porta de sua casa, toquei, bati à porta, berrei por João e nada, ninguém abriu. João teria saído? Achei estranho, ele nunca se esquecia de compromissos assumidos. Peguei na chave que uma vez me dera, dera porque estava sempre a esquecer-se da sua em casa, entrei e fiquei pasmado. João ainda estava em meditação. Estranhei porque João, nunca explicou porquê, dizia, apenas, que era prejudicial ficar mais de três horas em profunda meditação. Estaria ele toda a noite e já grande parte da manha em meditação? Reparei melhor, aquilo parecia mais estado de morto do que estado de meditação. Morto? Pensamento que me conduziu a um pânico imediato. Corri para João, medi-lhe as pulsações. Alivio! Respirei profundamente, o seu coração pulsava vida. Tentei despertá-lo em vão. João não tinha qualquer reacção, não respondia a qualquer estímulo.
Ainda hoje, passado quase um ano, João não reage a qualquer estímulo exterior. Internado no hospital, o seu estado vegetativo causa uma grande perplexidade no mundo da ciência médica. A sua actividade cerebral é praticamente nula. Embora não possa ser aceite, segundo dizem, de forma científica, a minha opinião é de que João na tentativa de se desprender de todos os pensamentos para atingir o «Eu Interior», foi progressivamente desligando todas as sinapses que pudessem gerar pensamentos. Atingindo assim o vazio, que tanto apregoava. A sua mente é tão vazia de pensamentos que não encontra uma sinapse que o traga de volta. Espero que um dia encontre o caminho de regresso, tenho esperança.

sábado, janeiro 21, 2006

AMOR E ROSAS

Podia, num simples estalar de dedos, desvendar todos os mistérios ocultos do universo. Detentor de segredos cósmicos pela arte da alquimia, Ilídio, podia mesmo transformar-se em puro conhecimento.
Oh! Mas não, não queria tal coisa, estava apaixonado. Queria o amor, a essência do amor, o amor mais puro de todos, o amor espiritual.
Provaria a Madalena, a sua paixão arrebatadora. Oh! O desejo que fervia no sangue! Haveria maior prova de amor que o sacrifício do prazer?
Ah! O amor não tem forma, não tem cheiro, não tem cor, é símbolo é fragrância dos sentidos. Branco, branco símbolo da pureza. Rosas! Rosas!
Negaria a carne, deixaria rolar as lágrimas de prazeres perdidos, ofereceria amor. Trocaria a alquimia pelo amor.
O amor existe, no sol, nas chuvas, na água e no mar. Existe nas rosas, nas rosas brancas.
Beijaria Madalena pela última vez, do beijo nasceria uma rosa, uma rosa branca.
Madalena beijava, quando os lábios de Ilídio se tornam pétalas, as mãos folhas, e as pernas caule. Uma rosa branca.
O amor abre-se em pétalas, liberta desejos, alarga sentimentos.
O amor é belo, intenso de paixão, Madalena quer dois em um. O uno, a fusão de seres, a felicidade da união. O desejo materializado. Aperta na mão a rosa branca. Solta-se, contorce-se em êxtase divino. A Rosa Branca sente o calor da paixão, do caule erguem-se espinhos. Espinhos penetrantes buscando o sangue escaldante de Madalena. Dois em um, prazer, prazer! Corre nas veias da rosa branca o sangue de Madalena. Rosa branca! Rosa rosa! Rosa vermelha!
A rosa vermelha sabia da paixão. As rosas brancas não sabem nada de amor. A rosa vermelha queria ser homem. Queria mais que alma e sangue, queria ser homem para provar as loucuras da carne. Queria ser homem mas não podia, a rosa vermelha nada sabia de alquimia.
Madalena amava a sua rosa vermelha, queria vê-la feliz. Não queria a solidão da rosa vermelha. Madalena comprou um ramo de rosas vermelhas, estas fariam companhia à sua rosa amada, que o amor está além da posse. Rosas vermelhas, tanta rosa vermelha! Madalena já não sabia qual era a sua rosa vermelha, pareciam todas iguais, todas tinham espinhos.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Intuição, Obsessão e Instinto

O corpo serpenteado de sua esposa, as nádegas altivas manchadas de tentação, os seios que se erguiam em esbelto talhe, apenas podiam significar – traição. Infidelidade!
Abatia-se sobre Celestino uma demência crescente que lhe consumia as entranhas e conspurcava a alma. Sentia os olhos cintilantes, o brilho demoníaco, de outros homens pousarem no corpo provocatoriamente torneado de Helena, sua esposa.
Sem outro meio de conservar a razão intacta, Celestino mudou e reforçou as fechaduras de casa, apenas ficara uma chave, a sua.
Colocou grades de ferro, nas janelas de vidros fumados, que impossibilitavam qualquer entrada ou saída de corpos estranhos e olhares imundos.
Trancada, fechada em casa, no 7º andar da Rua da Misericórdia, Helena estaria segura, longe de pecados, luxúrias e devaneios sexuais.
Estaríamos, mais ou menos, por meados da Primavera, Celestino regressava do trabalho, quando deparou com o barulho atordoante de sirenes, bombeiros, ambulâncias e todo o tipo de frenesim infernal. Incêndio!
Chocado, possuído pelo pânico, corria, corria desenfreadamente. Ardia diabolicamente o 7º andar, ardia a sua casa. Ao que parece o incêndio teria deflagrado no apartamento vizinho. Acabado o sustento das chamas, Celestino subiu. Subiu ao 7º andar, onde apenas sobravam as marcas negras do fogo. Subiu e viu. Viu Helena carbonizada, mesclada no corpo do seu amante. Sentiu um alívio divino, não era culpa sua. Helena viveria a morte como morreu em vida, no Inferno. Celestino sentiu uma enorme piedade pela alma de Helena, ele que nunca imiscuíra o seu corpo com os desejos da carne.
Perplexo olhou em volta, do armário embutido na parede ficara apenas a estrutura, vislumbrou na parede, outrora encoberta pelas roupas, uma passagem para o apartamento vizinho. A passagem, adornada de cinzas, dos amantes!
Celestino nunca mais viria a casar, a sua companhia era tão-somente um cão, de seu nome Fidel.
Passados dois anos, mais coisa menos coisa, ao fatídico acontecimento, Celestino passeava o seu cão, pelo parque da cidade, ao inicio da noite. Noite de lua cheia. A sombra ténue das árvores dançava com a gélida aragem que se sentia na «espinha». Dança não raras vezes interrompida pelas cinzentas, embora pequenas, nuvens que encobriam a lua.
Ora precisamente numa dessa interrupções, aparece repentinamente um vulto. Ladrão da noite, de arma em punho pretendia assaltar Celestino. Fidel, amigo de correrias encontrava-se longe, pressentindo um terrível perigo para o seu dono, desata a correr desalmadamente. O ladrão dispara, um tiro impaciente, contra Celestino. O cão, fiel amigo, atravessa-se no caminho da bala impedindo o seu destino. O ladrão, esse fugiu.
Os últimos gemidos, latidos de dor, do cão emocionam Celestino, como se a dor fosse sua. «Cão amigo, um cão com sentimentos humanos», pensou Celestino.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

No Reino dos Burros

No Reino dos burros decidiu-se que a democracia estava ultrapassada. Decidiu-se ainda, que quem podia satisfazer melhor os interesses dos burros, seria o maior dos burros. Fez-se um teste de QI Invertido e determinou-se o maior burro.
O maior burro, já no poder, decidiu como primeira medida, de modo a satisfazer a necessidade da população, implementar a maior das burrices. Sendo o maior dos burros, aquele que detinha a maior burrice, decidiu em primeiro lugar defender os seus próprios interesses.

No Reino da Democracia

No Reino da Democracia foi eleito o partido que melhor assegurava os interesses da população. O Primeiro Ministro eleito, viu-se na impossibilidade de satisfazer as necessidades de toda a população, durante o seu mandato. Portanto resolveu começar por zelar pelos interesses de uma parte da população. Como o PM era uma parte da população, visto fazer parte da população, decidiu acautelar os seus próprios interesses. É que de burro, o PM, não tinha nada.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Condenados (II)

Albino antes considerado sábio, vinha ultimamente sendo considerado louco. Vivia sozinho, depois das mortes trágicas da mulher e dos filhos, Gil e Vicente. A loucura, dado o que aconteceu é perfeitamente compreensível. Menos compreensível foi o esbanjamento da fortuna que tinha. Entregando de mão beijada avultadas somas de dinheiro a mulheres jovens que quisessem ter um filho seu. Não faltando candidatas o homem devia ser um tarado sexual e isso não tem desculpa.
João dos Cravos, desconhecia se o Sr. Albino estaria louco ou não, ouvira falar, «que sim», mas decidiu ver para crer. Chegado à casa do Sr. Albino, pensou em voltar para trás, «vai não vai» bateu à porta.
- Entre, está aberta.
João entrou, conhecia bem a casa, passou ali bons momentos ouvindo as histórias que o Sr. Albino tinha sempre para contar.
- Boa tarde, Sr. Albino. Então que tal vai a vida?
Albino levantou-se da sua poltrona cumprimentando João.
-Vai bem. E contigo?
Antes de João responder, Albino continuou.
-Vieste ver se estou louco? Como dizem por ai.
Disse Albino com um sorriso simpático.
- Não! Não, de maneira nenhuma!
- Então que te trás por cá?
João engoliu um silêncio constrangedor. Albino sorriu e continuou.
- Não estou louco João, pelo contrário nunca os meus pensamentos foram tão claros. Nunca tive tanto amor pela vida como agora.
O Sr. Albino convidou João para se sentar à beira da lareira.
João sentara-se numa poltrona, tendo alguma dificuldade em olhar para trás e de ver o Sr. Albino, que continuava em pé.
- O Gil era um grande humanista, mas ambos eram grandes pensadores. - Disse Albino enquanto pegava numa faca.
Uma faca! Uma faca enorme pensou João, terrificado. Ficou mais descansado quando Albino enfiou a faca no presunto que estava pendurado, cortando um pedaço e colocando-o em seguida num prato.
«Gil humanista?», pensou João, «deve estar mesmo louco».
Sentados, iluminados pelas chamas intermitentes, petiscavam pedaços de presunto saboreando uma garrafa de tinto maduro.
- Como estava a dizer, Gil era um grande humanista.
- Humanista? – Responde João com uma simpatia timidamente trémula, empurrada pelo tinto.
- Sim humanista, é difícil de compreender, vou tentar explicar. O mundo está em movimento, correcto?
- Sim.
-Para simplificar, vamos supor que o mundo é uma circunferência, com um movimento rotacional centrado no seu centro.
- Sim posso supor isso. – Respondeu João satisfeito este era o velho Albino que conhecia.
- Pois bem - continuou Albino – Supõe agora que nós humanos, ou qualquer outro ser, somos segmentos de recta, tangentes a essa circunferência.
- Sim também posso supor visto nos fazermos parte de um mundo em movimento e conhecermos muito pouco desse mundo.
- Supõe ainda que nós como segmentos podemos deslizar sempre tangencialmente sobre essa circunferência.
- Fácil - respondeu Albino – visto termos a capacidade de nos movimentarmos num mundo em movimento.
- Sim e também é fácil supor que a circunferência tem uma velocidade superior.
- Sim.
- Supõe agora que tu como segmento de recta, te queres dirigir para um determinado ponto dessa circunferência, digamos um ponto C, quantos caminhos tens à tua escolha?
- Dois – João com olhos a brilhar de entusiasmo – ou iria para a direita ou para a esquerda.
- Pois responde-me agora, agora qual é o destino final de qualquer ser humano.
- É a morte claro.
- A morte – Albino - faz parte do mundo certo?
- Sim.
- Portanto na nossa comparação, a morte, faz parte da circunferência, correcto?
- Sim.
- O que concluímos até agora foi, que temos apenas dois caminhos para nos levar à morte, certo?
-Sim. Podemos até dizer que um dos caminhos é a vontade própria, ou seja o suicídio e o segundo pode ser qualquer outro acontecimento.
- Muito bem, - responde Albino – ou seja o que queres dizer é que vamos morrer e ainda por cima só temos duas hipóteses por vontade ou por imposição. Não interessa, estamos condenados independentemente daquilo que façamos, correcto? (Continua….)…..

domingo, janeiro 15, 2006

Condenados(I)

Mais vale tarde do que nunca

Gil, entrava em estado de choque, tomava consciência de forma abrupta e macabra que o seu passado não teve sentido nenhum até agora, agora que tirava a ultima peça de roupa, à sua ultima vitima, com sempre fazia.Gil olhava com uma palidez fúnebre para o cadáver que poderia muito bem ter sido a sua alma gémea. Nunca mais mataria mulher alguma.
Afinal a sua última vítima não era mulher.
Afinal para seu espanto, não tinha aversão a mulheres, apenas gostava de homens.
Afinal tinha morto um travesti.


Natureza

Quando Gil se preparava, para a sua primeira experiência homossexual, ao ver o seu «quase amante» de costas, sentiu um enorme desejo. Não conseguiu resistir. Apunhalou a sua vítima até à exaustão.
O sangue quente da sua vítima, reconfortava-o.

Afinal, não seria a sua última vítima.
Afinal, tinha mais jeito para matar do que para amar.
Afinal, o acto de matar estava-lhe no sangue.
Afinal, o sangue derramado era um acto de amor.

Regresso às Origens

Gil tinha agora plena consciência, do caminho que teria de percorrer. Sabia para onde ia. Sabia que muito em breve chegaria ao seu destino. Percorria tranquilamente o seu caminho, quando descobriu que não sabia de onde vinha.
Decidiu voltar para trás, e desventrar a barriga da sua mãe.

Afirmação e Progresso

Gil decidiu assumir os seus crimes perante Deus.
Decidiu dirigir-se a um confessionário. Assumiria os seus crimes perante Deus de forma convincente, da única forma que sabia, assassinando o padre.

Realização

Gil encontrava-se perto do seu destino. Depois de ter morto, o Presidente da República faltava apenas um passo para complementar o seu caminho. O último passo a última morte, a sua. Encostou a arma à cabeça. Pum!!!

Livre Escolha

Gil tinha um irmão gémeo homozigótico. Vicente era em tudo igual a Gil, em tudo igual menos nas escolhas que faziam em vida. Vicente simplesmente não fazia escolhas, limitava-se a ficar sempre no mesmo sítio.Vicente apenas comia, bebia e f... quando podia, não ia a lado nenhum nem queria.
Vicente morreu exactamente à mesma hora e no mesmo dia que Gil. Apenas uma diferença, no caso de Vicente foi a morte que veio ter com ele.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Entre a morte e a vida

Albino, apôs um ataque cardíaco, estava metade morto e metade vivo. Coisa para a qual, a ciência não encontrava explicação. Morto da parte direita, vivo da parte esquerda. O coração batia regularmente visto encontrar-se do lado esquerdo, não conseguia falar, mas conseguia raciocinar. Por sinal, à medida que a podridão da metade direita ameaçava progressivamente a metade esquerda, o raciocínio de Albino tornava-se mais lúcido. Neste duelo, entre a morte e a vida, ganharia a morte, com certeza, a morte é de facto muito mais forte. Mais forte que a morte, é o amor que Albino tem pela vida. Antes que a morte se apodere definitivamente do corpo, decide sacrificar a metade esquerda.

Amor sem fronteiras

Numa época em que a igualdade de direitos sofreu uma grande evolução, havia ainda muito por fazer.Alvor, guardador de rebanhos, pastor de cabras, vivia já há vários anos com seu irmão, Dionísio: «Que diabo», pensava Alvor, «Somos cidadãos que pagamos os impostos que nos são tributados, cumprimos os nossos deveres, porque razão, não podemos ter os mesmos direitos que os cidadão casados?», «Por acaso existirá maior amor que o nosso?»,O facto de, duas pessoas não terem relações sexuais, não os podia impedir de usufruir o direito ao casamento, bem pelo menos, foi assim que o Supremo Tribunal sentenciou. Alvor e Dionísio casaram, ao casarem adquiriram o direito de se poderem divorciar (um direito que por acaso os solteiros ainda não tinham), facto que haveria de acontecer dois anos mais tarde.Alvor vivia agora apenas com a companhia do seu rebanho, tinha-se apaixonado pela Cinzenta, a cabra mais bela do rebanho. Alvor era um homem com princípios éticos e morais bem vincados, mas religiosos acima de tudo portanto sexo antes do casamento nem pensar.Estamos num tempo em que praticamente as florestas desapareceram, animais selvagens existiam apenas em zoo, em compensação a LIGA DE PROTECÇÃO DOS ANIMAIS tinha ganho poder, comprovado pela maioria de lugares assegurados no parlamento. Pois bem, foi essa mesma maioria que decretou, que qualquer humano poderia contrair matrimónio com qualquer espécie animal, isto, está claro, desde que o matrimónio não apresente riscos visíveis para o animal, dando assim importância prática ao slogan – frase chave que permitiu ganhar as ultimas eleições – “Os animais são muito mais que nossos amigos.”Os casamentos, entre homens e animais, principalmente entre homens e vacas, começaram a acontecer de forma exponencial, algo que confundiu muita gente foi a razão da preferência por este animal, menos os exploradores do mercado.Alvor e Cinzenta, viviam felizes, no entanto faltava algo na sua relação, um filho, sim um filho o desejo de qualquer casal, quase tão rápido como o desejo de Alvor foi a decisão do parlamento, que os casais zoófilos poderiam adoptar animais bebés, mas só se fossem crias de animais em vias de extinção, assim a preservação de algumas espécies estava assegurada, mas como todos os animais, pelo menos mamíferos, estavam em vias de extinção isso não gerou qualquer entrave. Assim sendo Alvor e Cinzenta adoptaram um Tigre de Benguela, reinava o orgulho dos dois ao verem o seu pequenino a crescer em cada dia que passava.Os exploradores de mercado começaram a criar clínicas de cirurgia estética para cabras, cujo grande especialidade era a implantação de silicone em cabras, criou-se assim a ideia que os humanos preferiam as vacas por causa do tamanho das mamas. E que havia muitos benefícios para os animais pois assim agradavam muito mais o seu parceiro, impedindo muitas vezes a violência doméstica, este argumento verdadeiro ou não possibilitou a aquisição de licenças para o desenvolvimento do negócio.No entanto havia quem argumenta-se que melhor que agradar aos outros seria, as pessoas ou animais, que em primeiro lugar deveriam era sentir-se bem consigo próprias, «E porque não corrigir pequenos infortúnios da natureza, com uma cirurgia ao alcance de todos?».Ao alcance de todos tornou-se apenas, quando estas cirurgias ficaram consagradas no Plano de Saúde, para delírio de muitas fêmeas, que podem agradecer ao prestígio e poder da Ordem dos Cirurgiões Plásticos que substitui a extinta, e não menos nobre, Ordem dos Médicos.Ora, não foi o motivo estético que levou Cinzenta a recorrer a uma dessa clínicas, embora do agrado do marido, mas sim a necessidade de produzir mais leite de forma a poder amamentar o seu filhote.Quem tem motivos para lá da parte estética é a recém criada Liga de Protecção dos Humanos, cujos membros foram outrora crianças órfãs. Esses motivos, que ainda pouca gente aceita, mas apoiantes são cada vez mais, prende-se com a evidência de existirem mais crianças órfãs que animais para adoptar.Das boas intenções de Cinzenta ninguém duvida, mais duvidosa foram os benefícios para a saúde dos implantes de silicone, se havia quem levantava a voz ao slogan - “mamas sãs em corpo belo”, não é menos verdade que vozes de inveja a poucos ouvidos chegavam, e mesmo quando chegavam , «O que valia a saúde comparada com um bom par de mamas?». Seja como for, Cinzenta não produzia leite para amamentar o seu mais que tudo, e teve que retirar o implante. O caso surgiu num jornal extremista, extremista para alguns, preconceituoso para a maioria. A maioria afirmava, e quando não afirmava pensava, que Cinzenta teve que tirar o seu implante, devido a ter ficado sem uma teta quando apareceram os primeiros dentes do seu filho.As eleições aproximavam-se, as sondagens continuavam a dar a maioria ao PILPA (Partido Internacional da Liga de Protecção dos Animais), o PD (Partido dos Dentistas) vinha em segundo lugar, tinha angariado muitos apoiantes desde que assumiu como sua causa, a «desdentação» das crias mamíferas, e depois da amamentação, ai sim, uma implantação dentária nas crias. O PLPH (Partido da Liga para a Protecção dos Humanos), tinha como causa principal pela igualdade de direitos na adopção por parte dos casais zoófilos de crianças em relação a outras crias mamíferas.Alvor e Cinzenta acabaram por se divorciar, O divórcio destes litigiosos, mereceu um acompanhamento especial pelas televisões, os advogados de defesa de Cinzenta , argumentavam, que o pedido de divorcio por parte de Alvor tinha como motivo o facto de Cinzenta ter uma teta a menos, e descriminação de animais portadores de qualquer tipo de deficiência era considerado crime.Já o advogado de Alvor argumentou que o pedido de divórcio se devia apenas à falta de comunicação que existia entre o casal, facto fácil de provar visto que Cinzenta não articulava palavra. O tribunal acabou por dar razão a Alvor e este ficou livre de pagar qualquer indemnização por danos morais. Alvor ainda acabou por lucrar pois acabou por vender Cinzenta na feira, coisa apenas permitida antes do casamento ou então apôs divórcio, como foi o caso.Os divórcios entre humanos e animais tornaram-se constantes, o ditado popular mais utilizado, que estava na moda, era: “Vaca que não dá leite feira com ela”, Se bem que tudo tenha começado com uma cabra …

Preservação e Selecção Natural

Ano de 2106.

Joana e Mário decidiram ter um filho, ainda bem que o fizeram hoje, 20 de Dezembro de 2106. Decidiram está decidido, não foi uma decisão precipitada, há quase um ano que pensavam nisto e ainda vão muito a tempo, a Clínica Pré-Natal, fecha as inscrições a 25 de Dezembro e só voltam a abrir em Novembro do próximo ano.

Hoje em dia as mulheres não carregam os seus filhos nas barrigas, existem os úteros mecânicos, com o nome técnico de Pré-berço, é fácil e cómodo para os casais, o casal só tem o trabalho de fornecer o óvulo, algum esperma, depois é só levantar o bebé. Depois, não é logo a seguir, é passado um ano, as gestações nesta época demoram exactamente 365 dias, 366 se o ano for bissexto, todos os óvulos são introduzidos em Pré-berços no primeiro dia de cada ano ao meio-dia. Os bebés nascem todos ao meio-dia do primeiro dia do ano seguinte.

É impossível hoje em dia, a mulher engravidar, ter uma gravidez indesejada, até porque devido à poluição a fertilidade é baixa, por outro lado a laqueação das trompas uterinas após o nascimento tem uma influência decisiva se dúvidas houvessem. Este método utilizado em todo o mundo, trouxe muita dignidade ao ser humano, visto reduzir drasticamente o aborto, para além do controlo da natalidade. Claro que crítica sempre houve e sempre haverá, há até quem vá mais longe e diga que, «isto não tem outro objectivo senão o de transformar a mulher numa máquina sexual». «Quem diz coisas destas ou é padre e nunca andou com filhos às costas, ou virgem e não sabe o que é bom», respondem outros.
Além de tudo o Pré-berço, está provado cientificamente que, é muito melhor que o útero materno quer em segurança para o feto quer no desenvolvimento futuro da criança.

No entanto a crítica mais ouvida e com mais apoiantes é o facto de a gestação demorar mais que 9 meses, argumento baseado na demagogia do antinatural. Coisa incompreensível, há gente mesmo céptica, todos sabem que a gestação demora um ano para reduzir exponencialmente o sindroma da morte súbita nos bebés.

A Clínica Pré- Natal é única no país, dirigida pelo Doutor Manolo Peres, reputado obstetra, reconhecido internacionalmente, pelos seus conhecimentos científicos, no entanto muito controverso por ser um activista pró-vida, portanto anti-aborto. Este facto torna-se ainda mais caricato, quando a Clínica Pré-Natal para além de ser a única maternidade do país é também a única clínica de abortos. No entanto faz todo o sentido, uma vez que assim o estado não despende dinheiro no transporte de fetos.

O facto da clínica Pré-Natal ser a única do país, é mais um motivo para os conservadores, frustrados com certeza, abrirem a sua boca maldizente. Só, e ainda bem, que o governo não anda a dormir e lançou rapidamente uma campanha que consistia em comparar a Clínica Pré-Natal com a Casa da Moeda, assim todos ficaram esclarecidos. Menos quem não queria ficar, esclarecido, mas, estes provavelmente tinham interesses obscuros.

Em alguns países o aborto é crime, felizmente no nosso país isso já não se passa, os pais têm o direito de abortar quando o entenderem. Nem sempre foi assim, houve tempos em que o aborto era crime, depois passou-se para uma fase em que a decisão do aborto cabia inteiramente à mãe, agora é da responsabilidade quer do pai quer da mãe, uma lei mais democrática o que diz bem do desenvolvimento do nosso país em relação a outros. Mas para se ter a verdadeira dimensão do nosso avanço, é reparar na possibilidade de se poder abortar até ao 364º dia de gestação, 365º se o ano for bissexto.

A gentalha que critica, gente sem escrúpulos só pode, da Clínica Pré-Natal ser a única maternidade, é a mesma que critica também o facto de ser a única clínica de abortos. Por ventura estes indivíduos quereriam que o estado gastasse o dinheiro dos contribuintes em negociatas particulares. Como antigamente, no tempo das grávidas, em que as clínicas de aborto proliferavam graças a um marketing agressivo e publicidade enganosa - estilo:
“Nós eliminaremos o seu problema eliminando o seu bebé. Faça um aborto. É seguro, fácil, e uma solução legal".
Nada mais falso pois os problemas não acabam aqui, pelo contrário começam, com traumas psicológicos a todos os níveis para a mulher. Assim como as coisas estão é melhor, o estado concentra os seus serviços havendo um rigor muito superior quer a nível económico quer a nível humano.

Decorridos onze meses desde que Joana e Mário recorreram à clínica, a vida tinha dado uma grande reviravolta. Joana sentia náuseas, sentia-se petrificada, colada à parede branca da sala, talvez tivesse que abortar. Imóvel ouvia apenas o barulho do carro de Mário, Joana fazia um esforço para mostrar coragem, dois passo em frente, mãos em cima da mesa para amparar, não foi difícil, pesado sim. Ah! Uma cadeira.

Mário entrava na sala, Joana, com uma voz tremida de ansiedade, «Conseguiste arranjar emprego?». De olhos vazios, secos, olhos que viram muitas desilusões escorridas em lágrimas, mas que jamais chorariam, olhos sem vida, Mário deixa sair um «Não.», indiferente, depois de Joana se levantar da cadeia para ouvir a resposta. Os ombros de Joana caíram desanimados com o peso de uma esperança morta.

Joana queria mesmo ter este filho, não tanto por causa dela, mas sim para ver se Mário renascia para a vida. O melhor era fazer o aborto, as coisas têm a gravidade que tem, o momento em que são vividas é que diferencia tudo. Vistas bem as coisas o ordenado dela é suficiente para os dois, para três é que não, «de facto a vida até é bem simples, nós é que temos a mania de complicar, e se calhar ainda nem é momento de sermos pais, talvez para o ano se a vida mudar». Joana sentia-se muito mais aliviada, tinha feito as contas sempre para três e o dinheiro faltava sempre. A única coisa que a preocupava agora era a burocracia para fazer o aborto. Podia ter pensado nisto antes de o feto completar os nove meses, mas a esperança que Mário arranjasse emprego era maior.

Mário acompanhava a esposa sem dizer palavra, não porque estivesse triste, mas sim por hábito, a que se tinha acostumado sempre que Joana tomava uma decisão, e neste caso particular mais o seu silêncio fazia sentido, «Afinal ela é que tem o instinto maternal, coisa de mulheres, que aos homens não fica bem a não ser que sejam virados do avesso.» ele só tinha que assinar a papelada como concordava e pronto. Bem, mas também não se pense que Mário é um insensível, e que vai fazer um aborto de ânimo leve, apenas não há outra solução.


Há apenas duas razões para se poder abortar apôs os nove meses de gestação, a primeira - motivos de ordem económica, como é o caso e fácil de provar visto Mário estar desempregado; a segunda –em caso, de litigio conjugal. Esta segunda razão tem sofrido várias alterações nos últimos anos, não por culpa do estado, porque a lei é boa, mas as pessoas é que se aproveitam das leis para abortar (após os 9 meses) sem razão válida. Não há muito tempo, que casais encenavam brigas, com testemunhas em frente da Assistência Social, só para poderem abortar e depois do aborto eram (inclusive testemunhas) apanhadas em festas a comemorar. E sinceramente não há razões nem necessidade destes comportamentos se as pessoas se lembrarem de abortar a tempo e horas. Mas não, a velha maldição histórica de deixar tudo para ultima hora continua presente. Há uns anos atrás os bebés nasciam no Verão, por causa das férias muitos casais decidiam abortar repentinamente, este foi o principal facto, que levou o governo a mudar a data de nascimento, poupando assim muito dinheiro aos contribuintes, os abortos são uma despesa considerável para o estado. É tanto maior quanto mais idade tem o feto, pois o feto também se alimenta, e comida de feto é cara.

Depois da papelada, preenchida, Mário e Joana, dirigiam-se ao armazém onde os fetos se encontravam. Era a primeira vez que se dirigiam ali, visitas a fetos só eram permitidas no momento imediatamente anterior ao aborto, medida que recolhia grande simpatia por parte da população, por evitar sentimentalismos, que poderiam deturpar o direito à escolha (abortar ou não abortar).

À entrada do armazém, encontrava-se o Doutor Peres, com uma seringa na mão. Apesar de o feto não ser Ser Pessoa, tinha o direito de ter uma morte digna e sem sofrimento, por injecção letal e não por perfuração ou outros métodos arcaicos.

O Doutor Peres ainda os tentou demover do aborto, mas principalmente Joana estava decidida. Percorriam o armazém com filas e filas de Pré-berços, quase todos hospedados, pois os pedidos tinham sido muitos. «Ainda bem que os Pré-berços são opacos.», pensava Joana. Mete uma certa confusão, e muita impressão, a Joana os fetos serem mais parecidos com rãs do que com seres humanos, como toda a gente sabe. No entanto, estes pensamentos que Joana tinha, foram-se apagando, à medida que observava o Doutor Peres. Joana estava enternecida, com o amor que o Doutor Peres demostrava com os fetos por onde vai passando. Parece até que cumprimenta um a um, «No fundo ele é como um pai de todos, já que até agora foi ele que os tratou.».

Chegaram ao Pré-berço 2106-009191, onde está aquele que seria o filho de Joana e Mário. Este potencial filho caso viesse a este mundo teria como BI o número do seu Pré-berço. De “ses” não é o mundo feito, e o Doutor Manolo Peres espetou a agulha, no tubo que conduzia o alimento ao feto 2106-009191. Olhou, para Joana, para esta descarregar a seringa, Joana não teve coragem, olhou para Mário, Mário não teve coragem. O que mais desassossegou Joana, não foi o acto em si de descarregar a seringa mas o olhar reprovador do Doutor Manolo, se bem que o acto em si, «é um pouco abominável».

«Pronto já está. Vêem, não custou nada.», diz o Doutor Peres ao casal com uma voz reconfortante,que aliviou profundamente Mário e Joana, «nem parece a mesma a mesma pessoa de há pouco com aquele olhar gélido, cortante como lâminas.

O que Joana e Mário nunca chegaram a saber, é que a seringa apenas continha vitaminas. « Afinal, eu não mataria o meu filho, ou qualquer irmão dele que está neste armazém.», pensou o Doutor Manolo Peres.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Mais vale tarde do que nunca

Gil, entrava em estado de choque, tomava consciência de forma abrupta e macabra que o seu passado não teve sentido nenhum até agora, agora que tirava a ultima peça de roupa, à sua ultima vitima, com sempre fazia.

Gil olhava com uma palidez fúnebre para o cadáver que poderia muito bem ter sido a sua alma gémea. Nunca mais mataria mulher alguma.

Afinal a sua última vítima não era mulher.

Afinal para seu espanto, não tinha aversão a mulheres, apenas gostava de homens.

Afinal tinha morto um travesti.

2049, Mirandela, Arredores de Portugal

Alcino Oliveira, 23 anos, casado com Maria de Lurdes, iria ser pai num futuro breve, três meses faltavam para Maria dar à luz para ser mais preciso.
De malas aviadas, para abalarem rumo a Lisboa, faltava mesmo ajeitar a albarda do Jerico, burro do casal que os conduziria à maternidade de Lisboa.

Ir de burro para uma maternidade poderia parecer estranho, à 40 anos atrás, actualmente é o meio de transporte mais utilizado em Trás-os-Montes, e ainda bem pois assim evitou-se a extinção deste animal, o burro, teimoso mas muito amistoso e bastante útil nos dias de hoje.

O burro após a preservação da sua espécie ter sido ameaçada, haveria de ganhar um grande impulso, depois do governo decidir finalmente combater a desertificação de Trás-os-Montes. Medida pouco popular na altura, para combater a desertificação, foi o corte das estradas, mas isso acabou por não ter grande sucesso. Então os órgãos de decisão numa medida muito mais diplomática decidiram apenas não construir novas estradas, nem preservar as poucas existentes, que mais tarde se tornariam caminho de cabras, caminho de cabras é exagero o mais correcto é dizer caminho de burros.

Não venham aqui os radicais trasmontanos falar de discriminação, pois o dinheiro não chega para tudo, e se há aeroportos e TGV, muito se deve a um grande esforço financeiro do país. Além do mais os trasmontanos não se podem queixar, pois hoje 25 de Setembro de 2049, têm clínicas para a interrupção voluntária da gravidez, salas de chuto e ainda clínicas para o tratamento da toxicodependência através da metadona, completamente suportada pelo Ministério da Saúde, é claro que mais uma vez o dinheiro não chega para tudo, e portanto Mirandela e todo Trás-os-Montes não tem Maternidade.

Ora é justamente o facto, de não existir Maternidade nas proximidades que leva Alcino e Maria de Lurdes fazerem-se ao caminho rumo à capital, terra de oportunidades. Alcino leva na Algibeira uma côdea de pão, ao ombro uma bota de vinho, que com pão e vinho já se anda o caminho, e se o caminho é longo como é o caso então um alqueire de figos secos e um garrafão de aguardente lá há-de matar o bicho, e afastar a geada, até ao Marão. Para lá do Marão é ao fundo, a descer todos os santos ajudam, pelo sim pelo não o melhor é levar a Matilde, a cabra do casal, que dará leite à grávida, e algum sustento se o vinho acabar. E se isto tudo não chegar haverá mais dias do que chouriças, a que uma dúzia de alheiras deve fazer frente.

Não se pense que o burro é o único meio de transporte possível, para sair de Trás-os-Montes, existe também elevado número de helicópteros, que são usados para o transporte da metadona, mas Alcino era demasiado orgulhoso para pedir boleia à cruz vermelha, ou a algum helicoptéro do estado.

Quem não gostou deste orgulho foi Maria de Lurdes, quando começou a sentir o nevoeiro do Marão a entrar -lhe nos ossos. «Tinha feito um aborto, tinha médico de família pelo menos durante três meses, ou período pós-traumático, tínhamos um subsídio para o recomeço da vida e escusava de passar por isto. A mulher é que devia ter o direito de escolher, se quer ter um filho ou não».
São pensamentos que uma pessoa tem quando se junta a fome com a vontade de comer, nada que uma fogueira e uma alheirita não curem, se Alcino assim o pensou, melhor o fez. Maria de Lurdes, agora com o estômago composto, acarinhada pela fogueira colocava a mão na barriga, «como pude ser tão estúpida». Alcino é que sabia a mulher que tinha senão teria havido discussão na certa.

Passo a passo, Lisboa estava perto, o vinho acabara-se, alheiras nem vê-las, restava Matilde, magra da viagem, mas alguma coisa se havia de aproveitar. Alcino e Maria tinham uma devoção especial por Matilde, tinha sido uma prenda de casamento. «Gado que não dá criação não o quero na corte», repetia Alcino vezes sem conta para ganhar coragem de fazer o que tinha de ser feito, «tantas vezes coberta e nada». Pronto, agora é que já não havia nada a fazer.

Chegados à capital, instalaram-se num bairro de lata, «provisoriamente até arranjar emprego». Emprego é que não era fácil arranjar, «a um transmontano não há vaca que lhe arreganhe a beiça e cair só morto, mesmo quando o trasmontano cai, cai para a frente, até na desgraça avançamos», dizia Alcino de peito aberto a Maria de Lurdes.

O problema era as habilitações, mas «onde diabo iria arranjar um emprego sem habilitações, em Lisboa não há agricultura, ler mal sei, …». «Emprego só quero até o meu filho nascer, vá lá até ao primeiro mês, altura em que deverá aguentar a viagem, depois de estar lá em cima comida não lhe há-de faltar, que boas mãos para o trabalho tenho eu.»

Felizmente o esforço é proporcional ao sucesso, e Alcino lá conseguiu uma vaga através do centro de emprego como toxicodependente, tinha o equivalente a um ordenado mínimo, não era muito mas pelo menos era garantido, valeu a pena esperar pois além do emprego a Assistência Social acabou por lhe oferecer um apartamento, habitação social, por uma renda irrisória, «afinal o mundo não é tão mau como isso», mas o que mais agradava a Alcino era ter médico de família, coisa que nunca tinha tido, de facto Lisboa oferece outras condições. «Tinha tentado ser toxicodependente em Mirandela, várias vezes, desde que Maria de Lurdes apanhou uma pneumonia, com intuito de arranjar médico de família, mas nada, em menos de 15 dias tenho aqui tudo».

O que Alcino não pensou foi que em Lisboa a vida é mais cara, e o ordenado mínimo mal dava para o pão. Se bem que a toxicodependência não lhe ocupasse o tempo todo, conseguir outro emprego não se avizinhava fácil. Maria de Lurdes queria ajudar, « que gravidez não é doença», e no centro de emprego havia várias empregos que não exigiam habilitações específicas. As mulheres não se podiam queixar de falta de empregos, graças ao grande esforço de sucessivos governos no desenvolvimento de programas para a igualdade de oportunidades. Tinha vários empregos para prostituta, o que Maria estava longe de imaginar era que as empresas de lenocínio legalizado, discriminavam as grávidas, argumentando que não tinham mercado, o caso ainda foi ao Tribunal de Trabalho mas tudo ficou em águas de bacalhau.

Mais uma vez a sorte sorriu a Alcino, que como toxicodependente conhecia muita gente, de todos os gostos e feitios, foi assim que travou conhecimentos com Albertino da Silva, toxicodependente mas também deputado nas horas livres. Albertino da Silva era filho de transmontanos, embora Albertino nunca tivesse pisado terras para lá do Marão, tinha um carinho especial por aquelas gentes, e tratou de arranjar um bom emprego a Alcino. Arrumador de carros, emprego muito apetecido, dos mais bem pagos de Portugal, em troca, visto que ninguém dá nada a ninguém, Albertino pediu o Jerico, o burro de Alcino. O burro era um elemento de apoio muito útil para qualquer deputado, servia de transporte e evitava-se o dispêndio de dinheiro com arrumadores de carros. Isto porque não existia a profissão de arrumador de burros, e os arrumadores de carros não tinham formação específica para cuidar destes animais. Estes animais tinham mesmo lugar assegurado na Assembleia da República, (estilo estacionamento), mas isso é outra história…

A vida corria bem ao casal, o filho nasceu bem de saudinha, dois meses após o parto, Alcino e Maria decidiram regressar à terra. Foi uma decisão difícil, principalmente para Alcino, ganhava bem e tinha-se viciado completamente no trabalho, mas as saudades de Mirandela falaram mais alto.

Não tendo, burro resolveram apanhar o TGV até ao Porto e dali para cima algo se haveria de arranjar. E assim foi, do Porto a Amarante foram a pé, graças a Deus, que gente conhecida sempre se encontra e como todos somos filhos da terra a amizade está feita. Alcino pedia uma boleia na carroça do Senhor Justino, carroça essa puxada por dois machos, macho para quem não saiba é o animal cruzado do burro com o cavalo.

O Sr. Justino tinha ido ao Porto buscar uma criança, já filho adoptivo, que tinha mandado importar de Africa. A importação de crianças e posterior adopção, é um programa do governo, financeiramente assegurado pela Assistência Social, para tentar rejuvenescer a idosa população portuguesa.
O Sr. Justino era um homem alegre de piada fácil, depois de saber a história de Alcino e como tinha perdido o seu burro, mandou logo a sua piadita, «Burro que vai para o parlamento nunca mais de lá sai».


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